terça-feira, 20 de setembro de 2011

"E agora? Quem poderá me salvar?"


Conversa rápida que tive ontem com uma das minhas estudantes antes da aula:

Ela: Esse lugar está horrível. Violento demais. Lá em frente ao prédio onde eu moro, junta um monte de gente para usar e vender drogas todo dia a partir das 10 da noite. Por conta disso, tenho de ficar sempre atenta para não deixar os meus filhos na rua até tarde. Sei lá, pode acontecer alguma briga ou tiroteio e eles serem feridos com isso.

Eu: É verdade. Você tem de tomar muito cuidado.

Ela: É por isso que eu dificilmente assisto à sua aula. Tenho de voltar pra casa cedo.

Eu: Tranquilidade. É por uma boa causa.

Ela: E o que mais me revolta é que ninguém faz nada. Aquele pessoal faz uma zoada desgraçada todo dia, vende e consome drogas abertamente e ninguém toma uma atitude; ninguém chama a polícia.

Eu: E por que VOCÊ não chama a polícia?

Ela: Eu, não!! Tá louco?! Eu tenho três filhos pra criar. E se esses caras descobrirem que fui eu a autora da denúncia e vierem atrás de mim para se vingar?

Eu: E você já pensou na possibilidade de os seus vizinhos não terem chamado a polícia por essas mesmas razões? Você já imaginou que os seus vizinhos podem sentir o mesmo medo que você sente de denunciar o caso e sofrer retaliações por causa disso? Você já pensou que as outras pessoas que moram no mesmo prédio onde você mora também têm filhos e, consequentemente, também têm medo de morrer e deixar as suas crianças desamparadas?  

Ela: (olhou para mim, virou-se e foi embora sem dizer nada).

Impressionante como as pessoas ficam indignadas com uma determinada situação, mas sempre esperam que alguém resolva a parada por elas. É provável que ela pense que é a única pessoa do mundo que tem filhos para criar, e, portanto, não pode se expor e correr riscos desnecessários - mas os outros podem, é claro.

É o que eu sempre digo: pimenta no rabo dos outros é refresco.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

"Jesus te ama, irmão"

Ontem à tarde, após um compromisso, estava voltando para casa. Quando o ônibus passou pelo Bom Juá, vi que havia um grupo de evangélicos fazendo pregação no meio da rua. Havia gente distribuindo panfletos aos transeuntes e dentro do carro (que mais parecia um trio elétrico, dada a quantidade, o tamanho e a potência das caixas de som). O pregador estava gritando e gesticulando (como sempre), fazendo de tudo para chamar a atenção das pessoas e, quem sabe, tentar trazer mais uma ovelha desgarrada para o rebanho do senhor. O buzu dentro do qual eu estava passou bem na hora em que o sujeito falou a seguinte frase:

“A IRA DO SENHOR PERMANECERÁ SOBRE AQUELES QUE REJEITAM A SALVAÇÃO”

Ao ouvir isso, pensei: para tudo! São essas as pessoas que vivem repetindo o tempo todo que deus é bom, amoroso, compassivo e misericordioso, cheio de bons sentimentos e incapaz de guardar mágoas e rancores? Então, por que deus fica irado com as pessoas que não querem ser salvas? Esses fanáticos falam a todo instante que a Bíblia diz que deus deu o livre-arbítrio para que a humanidade possa fazer as suas escolhas. Todavia, por que deus se torna implacável contra os seres humanos que tomam decisões que não condizem com os interesses dele? Se deus é tão compreensivo quanto dizem, eu acho que ele tem que aceitar qualquer decisão tomada pelos humanos (livre-arbítrio é isso – pelo menos para mim). Se ele me dotou da capacidade de decidir, eu vou tomar a decisão que eu bem entender. Se eu quiser fumar maconha, beber, estudar Direito, virar bandido, estudar física quântica, me prostituir, escalar um prédio sem equipamento de segurança ou seja lá o que mais, deus não tem nada a ver com isso. Ele deu o poder do discernimento a mim e, agora, não quer aceitar o caminho que EU escolhi para a minha vida? Só lamento. Agora, aguente!

O mais irônico disso tudo é que são essas mesmíssimas pessoas, que acreditam nesse deus vingativo, perseguidor, cruel e autoritário, que saem às ruas para distribuir folhetinho, fazer pregação nos ônibus, dizer que deus é amor (!), que jesus tem um plano na minha vida, e que para isso eu tenho de entrar em determinada igreja para receber as bênçãos dos céus e ser agraciado com a salvação. Já tive um colega de escola que só faltou colocar uma arma na minha cabeça e me obrigar a ir à igreja porque ELE achava que eu tinha de ser salvo de qualquer jeito, pois jesus havia mudado a vida dele e queria mudar a minha também – por mais que eu não quisesse isso. A minha sorte foi que o ônibus apareceu logo, e, em virtude da situação, eu pulei dentro e larguei o babaca lá falando sozinho. Nunca mais vi o desgraçado depois daquele dia (ainda bem!).

Tô fora! Cultuar um deus que ficará o tempo todo se metendo na minha vida, vigiando as minhas ações, interferindo nas minhas vontades mais subjetivas, dizendo o que eu devo ou não devo fazer e que não hesitará em acabar comigo se por acaso eu, em algum momento, não fizer o que ele quer? Nem morto! Quem vai é coelho!!!

(Se deus é capaz de fazer isso tudo porque me ama, eu nem quero imaginar o que ele faria caso me odiasse.)

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

"Você está com cara de terrorista!!!"

Sou negro, alto, corto os meus cabelos muito esporadicamente e gosto bastante da minha barba. Odeio ter de passar barbeador na cara toda semana; acho isso um saco. Por conta disso, sempre aparece um (ou uma) mala para encher a minha paciência dizendo que eu deveria tirar a barba (como se eu tivesse pedido a opinião delas acerca do meu visual), que a barba envelhece a aparência da pessoa (como se eu me preocupasse em ser jovem a vida toda), que a barba dá uma aparência de falta de higiene (apesar de eu lavar a minha barba todo dia com shampoo anticaspa e penteá-la cuidadosamente), que o homem sem barba fica mais apresentável (como se eu fizesse questão alguma de ser simpático), dentre outras coisas.

Por conta da minha barba grande, várias pessoas, conhecidas ou não, ao me verem na rua, têm reações diversas: umas pensam que eu sou mendigo, outras pensam que eu estou de mal com a vida (como se não ter barba fosse indicador de que eu estivesse radiante de felicidade), outras pensam que eu sou usuário de drogas ilícitas (claro, né, Rogério?! Quem vai imaginar que uma pessoa branquinha, loirinha e de olhos azuis, de cabelos bem tratados e barba bem aparada, bem vestida, arrumada e perfumada fuma maconha, cheira cocaína ou cachimba crack? Você também, viu?!). E, para terminar, sou constantemente associado por essas pessoas aos membros do Taliban. Frequentemente surge no meu caminho um imbecil para gritar “bin Laden”, “ô Osama!”, “terrorista!!!”. Como se os terroristas fossem só muçulmanos com longas barbas e turbantes.

Semana passada, ao chegar a um dos locais onde trabalho, uma estudante olhou para mim e disse que eu estava igual a um terrorista. Eu, ao ouvir isso, parei, respirei, contive os meus impulsos, medi bem as minhas palavras, olhei de volta para a cara dela e sentenciei:

-É verdade. Você está certa. Aquele sujeito que matou 76 pessoas lá na Noruega é parecidíssimo comigo. Quase meu irmão gêmeo, de tão semelhante a mim. Se estivéssemos um ao lado do outro, ficaria difícil distinguir quem é quem.

Quem pensaria que um homem loiro, alto, de olhos azuis, cabelos bem tratados e muitíssimo bem vestido seria um assaltante, por exemplo? NINGUÉM!!! Ladrão é só aquele sujeitinho vestido com uma camisa da Billabong, bermuda da Cyclone, sandália Kenner, boné da Adidas, batidão feito com abridor de latinha de cerveja, com um anel em cada dedo e óculos escuros da armação rosa ou verde-cana. Aí, sim, né? Tá na cara!!

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Racismo é engraçado?

Estava navegando pela internet despropositadamente quando vi no site do Instituto Geledés uma nota sobre uma acusação de racismo contra o SBT. O texto repudiava uma apresentação, feita no Programa Silvio Santos, de um humorista que atende pela alcunha de “Mulher Feijoada”, negro e presumidamente homossexual, que levou o auditório ao delírio ao contar piadas racistas do começo ao fim do seu “espetáculo”. Aquela velha postura de escravo da casa-grande que faz de tudo para agradar o senhor de engenho, incluindo aí servir de bobo-da-corte para os convidados deste.


Desnecessário dizer que eu ODIEI esse showzinho tétrico. Falo isso porque um dos instrumentos mais poderosos a serviço do racismo é justamente o humor. As piadinhas racistas têm um poder extraordinário de naturalizar o racismo na cabeça das pessoas. Afinal, tendemos a gostar e a aceitar aquilo que nos faz rir. Até já escrevi sobre isso.

É também por causa disso que o combate ao racismo se torna mais difícil, até porque toda pessoa que vai de encontro ao que é “engraçado” invariavelmente é tachada de chata, mala e mal-humorada. Porra, será possível que você não desliga nem na hora de se divertir? Logo, tudo é aceito como uma simples "brincadeira". Quem é louco de expressar seu ódio racial com afirmações veementes ao outro? Os nossos racistas dificilmente têm coragem de dizer na cara o que pensam sobre as pessoas que mais odeiam na vida. Que o diga a baiana eleita a mais bela descendente de italianos neste ano.

Toda vez que eu condeno publicamente a postura das pessoas que se utilizam do humor para veicular e reforçar estereótipos racistas, machistas e homofóbicos na mente dos outros, a reação é sempre a mesma: você está vendo coisa onde não existe, isso é coisa da sua cabeça, "é só uma piada", você não tem senso de humor, "toda piada tem uma vítima" (curioso é que as vítimas são sempre negros, gays, mulheres, gordos... Por que ninguém faz piada com homens brancos, ricos, europeus e heterossexuais?), é assim mesmo, fazer piada é o trabalho do cara... Ele vive disso, pô!
Se algum humorista fizesse, por exemplo, piada de judeu (se o humorista não fosse judeu, é claro), não faltaria gente para repudiá-lo pelo antissemitismo. Mas quando alguém rechaça piadas contra negros, essas mesmas pessoas dizem que nós estamos enchendo o saco, que nós não temos o que fazer, que nós somos paranóicos que vemos racismo em tudo, que nós somos complexados, que ninguém pode falar mais nada... Tudo é racismo, tudo é preconceito, QUE PORRA!!!

Há três anos, a Federação Israelita do Rio de Janeiro entrou na justiça para impedir que um carro alegórico da Viradouro que trazia uma suástica e uma imagem de Hitler desfilasse na Sapucaí. Não me lembro de ter visto, lido ou ouvido nenhuma declaração ofensiva contra os judeus ou tentando minimizar a tragédia e o sofrimento impostos pelo nazismo. Afinal de contas, eles estão certos; o holocausto nazista foi um dos maiores crimes da história, seis milhões de judeus foram exterminados nos campos de concentração, um absurdo!

(Como disse o poeta martinicano Aimé Césaire, os europeus, antes da ascensão do Terceiro Reich, protagonizaram inúmeras carnificinas fora da Europa tranquilamente. Quem já leu alguma coisa sobre o tráfico de escravizados sabe do que eu estou falando. Populações inteiras e culturas milenares foram aniquiladas na Ásia, na América e na África durante séculos e os europeus que ficaram lá na Europa acharam que isso era o certo, pois tratava-se de povos "atrasados" e "inferiores" que os europeus tinham a obrigação moral de "domesticar".

Quando o poeta irlandês Roger Casement denunciou as atrocidades cometidas pelo regime do rei belga Leopoldo II no Congo, que matou cerca de trinta milhões de pessoas de 1885 a 1908, ninguém levou o cara a sério. O grande arquiteto intelectual do nazismo, o médico alemão Eugen Fischer, testou a validade das suas teorias, aprendeu a construir campos de concentração e a matar pessoas na ilha de Shark, na Namíbia (tomem conhecimento disso aqui). Entretanto, ele não foi execrado por ninguém devido a isso.

Mas quando Hitler e os seus cupinchas usaram toda essa experiência acumulada em construir máquinas da morte para fazer a mesma coisa dentro da Europa, foi um absurdo. Veio a criação da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos [promulgada numa época em que os mesmos europeus ainda estavam escravizando, explorando, estuprando e exterminando gente nas colônias africanas], a Convenção de Genebra e o caralho a quatro. Tudo porque os europeus tinham de se proteger deles mesmos.

Pimenta no rabo dos outros é refresco.)

Se fosse uma entidade do movimento negro que entrasse na justiça para impedir que um carro alegórico de uma escola de samba qualquer desfilasse exibindo uma imagem de um negro sendo chibateado no tronco, essas mesmas pessoas torceriam o nariz, diriam que isso é uma bobagem, a história foi assim mesmo
(o fato serviria apenas para uma retratação dos fatos históricos que constituem a formação do país), os negros já gostam de se fazer de vítima, a escravidão já passou e que os negros não melhoram de vida porque só ficam pensando no passado ao invés de esquecê-lo, olhar para a frente, trabalhar duro e cuidar da vida. Ahhh, que saco!!

E ainda gritariam no final: "CENSURA! CENSURA! OS NEGROS QUEREM ACABAR COM A LIBERDADE ARTÍSTICA NO PAÍS!!!"

terça-feira, 12 de julho de 2011

Futebol feminino, machismo e discriminação racial: o que uma coisa tem a ver com a outra?

Como boa parte da população brasileira não sabe, está rolando a Copa do Mundo de Futebol Feminino (hã?! Copa do Mundo de Futebol Feminino?!?!! Onde?!). As partidas começaram no final do mês passado e a final acontecerá no próximo dia 17 de julho. A grande imprensa, com destaque para a Rede Globo, não está dando nenhum destaque à competição. Em ano de Copa do Mundo de futebol masculino, as emissoras de televisão, os jornais, as revistas e os anúncios publicitários começam a encher o saco desde o início do ano sobre o Brasil na Copa, o povo brasileiro tem que torcer, devemos prestigiar a pátria de chuteiras, é o Brasil, o Brasil, o Brasil... Já quando as mulheres estão em campo...

Se não fosse a Band, as poucas pessoas que ficaram sabendo disso não teriam a oportunidade de ver os jogos. Mas não poderia ser diferente, pois, afinal de contas, a Band é a única emissora brasileira que incentiva o futebol feminino no nosso país. Luciano do Valle tem os seus erros, mas é o único grande jornalista esportivo que prestigia as mulheres futebolistas e cobra maior apoio dos patrocinadores e da CBF para que elas possam ter as condições mínimas necessárias para viver do esporte.

Infelizmente, a seleção foi eliminada pelos Estados Unidos nas quartas-de-final no domingo passado. Apesar de a zagueira Daiane ter feito um gol contra logo no começo do jogo e ter perdido um pênalti, não foi por causa disso que as nossas mulheres foram desclassificadas do certame (é bom dizer isso para depois algum espírito de porco não tentar fazer com ela a mesma coisa que fizeram com o goleiro Barbosa após a derrota da seleção brasileira na final da Copa de 1950). O gol contra foi uma infelicidade, e o desperdício do pênalti foi compreensível para uma jogadora que atuou durante cento e vinte minutos e, portanto, estava fisicamente cansada e psicologicamente abalada por conta do lance infeliz no início da partida.

O maior erro foi do treinador Kleiton Lima, que armou o time errado, subaproveitou jogadoras importantes e não fez as alterações no momento certo – além, é claro, de ter escalado uma jogadora emocionalmente desestabilizada para bater um pênalti. Deixei um comentário lá no site da Band sobre isso. Se quiserem conferir, fiquem à vontade.

Entretanto, eu não quero fazer outra resenha da partida. Quero, na verdade, levantar uma discussão acerca de outros aspectos relacionados à transmissão, especialmente a forma como é vista a mulher no esporte. Pode parecer estranho, coisa de maluco que vê coisa onde não existe. Que seja! Eu fui treinado para prestar atenção aos detalhes, àquilo que a maioria das pessoas não vê (não estou me autoelogiando publicamente, mas apenas dizendo que o meu trabalho é esse. Não faço mais do que a minha obrigação). Estava eu assistindo a Brasil X Noruega, jogo realizado no dia 3 de julho, e vi e ouvi que o comentarista Neto não parava de rasgar elogios à beleza das jogadoras norueguesas. Ele não cansava de dizer que elas eram lindas, maravilhosas, como tem mulher bonita na Noruega!!! Isso começou a me incomodar um pouco, e por isso resolvi ficar mais atento. Parece até que eu estava adivinhando o que viria em seguida.

No segundo tempo, ele não aguentou. Tornou a rasgar mais e mais elogios à beleza das norueguesas e, na volta do intervalo, soltou a seguinte pérola: "se beleza ganhasse jogo, já estaria oito a zero para a Noruega".

(Curioso que nenhuma jogadora brasileira é bonita aos olhos dele. Nem Érika, a única loira do time. Ou seja, não basta ser loira para ser bonita. É preciso ser europeia ou descendente de europeus.)

No jogo seguinte, contra a Guiné Equatorial, observei com atenção máxima as palavras dele e constatei que ele não fez um comentariozinho sequer sobre a beleza das jogadoras guineenses. Por que será? Deve ser porque mulheres negras não são bonitas, não é mesmo?

Aposto que se alguém disser a ele que o comentário feito acerca das norueguesas é racista, ele jurará que não e ainda dirá que está cansado dos patrulheiros do politicamente correto. Já estou até vendo - e ouvindo: "Ihhhhh! Que saco! Será possível que eu não posso falar mais nada?! Tudo é racismo, tudo é preconceito, QUE PORRA!!!"


Para completar, ele fez a mesma coisa na partida entre Brasil e Estados Unidos. Em um determinado instante em que a goleira Hope Solo apareceu na imagem (ela foi a mais privilegiada pela geradora das imagens, é claro), o narrador Luciano do Valle falou que ela era uma goleira muito competente e habilidosa. Neto não perdeu a chance: "habilidosa E LINDA!"

Dei uma olhada nas reportagens sobre o jogo disponíveis na internet, e todas elas trouxeram na manchete "a musa Hope Solo eliminou o Brasil...", "a goleira vira musa...", "musa Hope Solo isso...", "musa Hope Solo aquilo..."

Ou seja, pouco importa se ela é competente, pouco importa se ela teve uma boa atuação na partida, pouco importa o fato de ela ter defendido duas cobranças de pênalti. Importa mesmo o fato de ela ser linda – e nada mais.

Quando os homens estão jogando, ninguém repara na beleza deles. Pouco importa se eles são bonitos ou feios, o que interessa é saber jogar e colocar a bola nas redes do adversário (quer dizer, também não é assim. Afinal de contas, quando vocês viram um jogador africano ou asiático aparecer nas listas de jogadores mais bonitos da Copa? O único brasileiro que apareceu na lista de bonitões da Copa 2010 foi Kaká. Mas Kaká é preto?). Já com relação às mulheres, a mídia só quer saber da beleza física delas. Por que isso? Elas entraram em campo para jogar futebol ou para um desfile de moda? Não sei vocês, mas eu penso que a beleza física de uma mulher é desimportante quando ela decide praticar um esporte. O que importa é competência, habilidade e preparo para obter o máximo de rendimento. Ou eu estou errado?


sábado, 2 de julho de 2011

Marcha das Vadias em Salvador – 02/07/2011

Sou militante antirracista há sete anos. Entretanto, percebi depois de um certo tempo que não basta lutar só contra o racismo por uma razão bem simples: o racismo não age sozinho. A homofobia, o preconceito de classe e o machismo, por exemplo, são ideologias tão destruidoras quanto a primeira e não agem isoladamente. Muito pelo contrário.

Eu fui criado com base em todos esses valores (e quem não foi?), e resolvi lutar contra todos eles assim que tomei consciência disso. Para tanto, resolvi ir hoje à Marcha das Vadias em Salvador. O movimento, que teve como epicentro a cidade de Toronto, no Canadá, já aconteceu em vários países e algumas capitais brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Brasília, Recife e Fortaleza, pelo que sei) e, aqui em Salvador, foi realizado em concomitância com as comemorações dos 188 anos da Independência do Brasil na Bahia e transcorreu com muita tranquilidade, descontração e uma forte contestação ao machismo e ao sexismo reinantes em nossa sociedade.

Várias foram as bandeiras levantadas pelas manifestantes (descriminalização do aborto, apoio à causa LGBT, repúdio à usina de Belo Monte), mas a mais enfatizada nas faixas e cartazes foi o enfrentamento à cultura do estupro. Todas as participantes fizeram questão de contestar a ideia que divide as mulheres desde cedo entre “santas” e “putas”, reivindicaram o direito inalienável de serem donas dos seus corpos e repudiaram o pensamento dominante que, ao invés de condenar o agressor, coloca sobre as vítimas a culpa por terem sofrido violência sexual – como se fosse possível alguém pedir para ser violentada, espancada, torturada e até assassinada com requintes de crueldade.

A causa é nobre, a iniciativa é louvável, os motivos são justos, mas apesar disso houve quem tentasse desqualificar os propósitos da Marcha. Em um dado momento, um babaca apareceu na janela da casa dele vestindo uma camisa vermelha com a mensagem “A minha camisa fica vermelha quando eu fico excitado” e começou a fazer deboche da cara de algumas manifestantes (que prontamente responderam ao imbecil com uma sonora vaia). Minutos depois, a minha esposa se aproximou de mim e disse que ouviu um sujeito negro, gordo, vestindo uma camisa que trazia uma imagem de uma mulher com o cabelo black power olhar para a manifestação e dizer: “isso tudo é uma tremenda baixaria”. Ou seja, o sujeito se diz (ou pelo menos aparenta ser) um ativista antirracista, mas acha que mulher tem que ficar em casa esquentando a barriga no fogão, esfriando no tanque e cuidando dos filhos.

(É óbvio que não foram todos os homens que agiram assim. Aqueles que se solidarizaram com a causa foram muito bem recebidos e tratados pelas mulheres presentes, o que mostra que esse clima de guerra dos sexos não leva a lugar algum e que as feministas não são naturalmente androfóbicas ou, como se diz atualmente, feminazis.)

Quis tirar muitas fotos, mas não tirei porque a minha máquina deu defeito. Só consegui tirar cinco. É pouco, mas foi o que eu consegui e por isso vou coletivizar convosco. Confiram abaixo:

Foto 1



Foto 2



Foto 3



Foto 4



Foto 5








terça-feira, 12 de abril de 2011

Documentário Cortina de Fumaça: proposta de um debate sério, fundamentado e sem preconceitos sobre drogas

Você é contra ou a favor das drogas? Você acha que um assunto sério como esse deve ser discutido de uma forma tão bipolar e maniqueísta, na base do "você é Bahia ou é Vitória, afro?"? Você pensa (e acredita) que a maconha é a porta de entrada para drogas mais pesadas? E que a única coisa que se pode fazer com a maconha é colocá-la para secar, enrolar as folhas secas num papel de seda, fumar e ficar doidão? Você acha que toda pessoa que consome maconha, cocaína e crack é uma criminosa de altíssima periculosidade, nociva ao convívio social?

Você toma uma cerveja todo dia no final do expediente e fuma uma carteira de cigarro, mas diz que não é viciado? E quem de fato é viciado é o seu vizinho sacizeiro? Você assiste ao Na Mira, ao Se Liga Bocão e a outros programas sensacionalistas e policialescos e só falta ter um orgasmo quando um suposto traficante aparece morto com a cara toda brocada de bala ou quando um delegado apresenta um soldadinho borra-botas de boca-de-fumo e diz que "a prisão deste meliante representou um duro golpe contra o tráfico de drogas no nosso estado"? Você acredita que esse mesmo soldadinho zé-mané é o único responsável por todo esse mar de violência em que nós vivemos só porque ele anda armado e acompanhado de mais alguns zés-manés iguais a ele?

Você acha que esses caras, que não sabem nem ler, são os que se beneficiam dos espantosos lucros que o tráfico de entorpecentes movimenta no mundo? São aqueles pretinhos favelados que abandonaram o Complexo do Alemão para não serem abatidos os que têm contas na Suíça e demais paraísos fiscais para guardar o dinheiro sujo do tráfico? Você acha que só é possível combater o tráfico de drogas com mais policiais, mais viaturas e mais armamentos? Você acha que as UPPs estão se instalando nas comunidades pobres das grandes capitais brasileiras com o único propósito de expulsar os bandidos e impedir que eles voltem? E que tudo isso visa de fato eliminar as drogas da face da terra?

Você ainda não entendeu que é o proibicionismo que causa tudo isso? Que está na hora de abrir um debate sério e amplo sobre o assunto? E que esse debate não seja mais calcado em preconceitos e ignorância? O que mais terá de acontecer para você se dar conta disso e entender que esse problema também é seu?

Bem, se você pensa dessa forma, eu recomendo que você assista a esse documentário aqui. Acredito que nunca mais você verá, ouvirá ou lerá uma reportagem, matérias de jornais e revistas ou as opiniões desses (sempre os mesmos) pseudoespecialistas que aparecem na TV falando sobre drogas da mesma forma.

Claro que eu sei que alguém poderá pensar que tudo isso não passa de uma invenção de algum desocupado, mas eu peço gentilmente que você faça um esforcinho, tente lutar contra os seus preconceitos e verdades preestabelecidas e tenha um pouco de humildade para notar que a realidade não é única e tampouco tão esquemática quanto você foi treinado e treinada para entendê-la.

Eu também sei que é muito difícil tentar explicar o que é o mundo para quem só o conhece através do Jornal Nacional e das novelas da Globo, mas eu me lançarei ao desafio. Sou brasileiro, e não desisto nunca.

Sem mais delongas, vamos ao material:

Parte 1/6


Parte 2/6


Parte 3/6


Parte 4/6


Parte 5/6


Parte 6/6

quarta-feira, 30 de março de 2011

Salvador, 462 anos. Comemorar o quê?

Ontem, Salvador fez aniversário: 462 anos. Não publiquei o texto no dia 29/03 porque não pude escrevê-lo em tempo hábil. Mas, como diz o costume, o que vale é a intenção. Como eu moro e transito na cidade todo dia, não faz muita diferença o fato de ter publicado os meus escritos um dia depois. Eu acho.

Esse papo de exaltar as belezas da cidade, as praias paradisíacas, o carnaval, a culinária, a religiosidade (de uma forma bastante estereotipada, diga-se de passagem), a terra do axé, já deu. Não estou aqui para falar disso. Afinal de contas, eu não sou agente de turismo.

O que eu quero mesmo é fazer uma homenagem ao povo dessa cidade. Não à parcela branca e rica que odeia e repudia a herança cultural africana, que acha que ser preto só é bonito no Carnaval (e olhe lá), mas se utiliza dela (e deles) sem o menor pudor para se promover ou auferir algum benefício. Se os “bem-nascidos” cagam para mim, eu também cago (e continuarei cagando) para todos eles.

Quero exaltar as pessoas que ralam todo dia para sobreviver nessa selva. Que saem de casa sem saber se retornarão. Que têm de aguentar tudo o quanto é miséria em nome do sustento próprio e da sua família. Que pegam ônibus lotado todo dia de manhã para ir trabalhar e à noite na hora de voltar para casa. Que, depois de terem sido exploradas o dia inteiro, ainda encontram energias para estudar à noite e sonhar com um futuro melhor. Que vivem num lugar onde os mais ricos ganham vinte e cinco vezes mais do que os mais pobres. Que têm de morar numa cidade onde morrem em média de 25 a 30 pessoas assassinadas por fim de semana – e que há pessoas que acham isso normal. Que têm de driblar as arapucas que o racismo impõe à maioria da sua população, pois a Bahia só é a terra da felicidade nas propagandas da prefeitura e das agências de turismo. Que ouvem dizer que têm o carnaval mais democrático do mundo, mas observam uma minoria curtindo o melhor do luxo enquanto os excluídos têm de acampar na rua durante uma semana para ganhar algum trocado vendendo cerveja e churrasquinho, catando latas e garrafas e segurando corda nos blocos. Que veem um cantor receber R$ 2 milhões para tirar a barba em uma ação promocional de uma marca de barbeadores, enquanto muita gente passa fome. Em que um bloco chega a cobrar R$ 1.200 por um abadá, mas paga uma diária de R$ 30 a um cordeiro (quando paga) sem dar ao cara água, protetor de ruído, luvas e o direito de usar o banheiro do trio. Que vive num apartheid sem as leis do apartheid.

Pessoas que, infelizmente, ainda têm de dormir em uma fila no posto de saúde para pegar uma senha e ser atendida daqui a dois ou três meses (isso se o médico não faltar no dia da consulta, é claro). Que, por não ter grana, têm de colocar os filhos e filhas para estudar numa escola pública lenhada, sem professores, bibliotecas, computadores, merenda, e que ainda ouvem que os seus filhos não têm bom desempenho escolar porque são burras e desinteressadas (“elas não querem nada”). Que saem todos os dias às ruas para montar a sua banca de camelô, vender água, doces, picolé e caneta nos ônibus e DVD pirata na Lapa, na Avenida Sete, na passarela do Iguatemi e na Estação Rodoviária. Que fazem quatro a cinco faxinas por dia para conseguir dar o que comer às suas crianças. Que limpa vidro de carro nas sinaleiras. Que aguentam os passageiros malas quando estão dirigindo e passando troco dentro dos ônibus. Que têm de aguentar motoristas escrotos que não param no ponto, que dão banho de lama nas pessoas só de sacanagem, e cobradores mal-educados e mal-humorados.

Que começam a tremer de medo de a casa construída no morro com tanto sacrifício desabar quando caem os primeiros pingos de chuva, e depois ainda têm de aguentar o pessoal da SUCOM dizer para elas não ocuparem as encostas quando o Estado tinha a obrigação de dar-lhes moradia decente. Que fumam crack nas ruas e debaixo dos viadutos para tentar esquecer a condição de subalternidade, exclusão e invisibilidade a que são impostas. Que vendem pequenas quantidades de droga nas ruas por não encontrar outra oportunidade de emprego, mas são apresentadas como megatraficantes perigosos no Na Mira e no Se Liga Bocão. Que carregam compras nas portas dos supermercados em carros de mão para ganhar R$ 3 e ainda serem chamadas de preguiçosas. Que vendem caldo de cana nas ruas. Que vendem café e cigarro nas guias de cafezinho (uma mais criativa do que a outra). Que se viram para não sucumbir.

Que, mesmo tendo de enfrentar todas essas mazelas, ainda encontram maneiras de se divertir (afinal, ninguém é de ferro). Que se divertem no pagodão por essa ser a única possibilidade de diversão que o pobre pode pagar (inteira R$15, casadinha R$20. Junta dez meu, dez seu e vamos embora). Que vão ao Barradão ou a Pituaçu ver o time do coração jogar, pagam um ingresso caro para um jogo que começa às 22h e mofam no ponto de ônibus depois que o jogo acaba tarde da noite. Que curtem Gerônimo toda terça-feira na Escadaria. Que não abrem mão de tomar um cravinho no Bar do Cravinho. Que frequenta, aprecia e declama suas poesias toda quarta-feira no Sarau Bem Black do Bar Sankofa (salve Nelson Maca!). Que vão, pelo menos uma vez por mês, ao Tia Célia comer aquela feijoada. Que curtem as praias da cidade, apesar do cenário desolador que se formou após a derrubada das barracas. Que curtem a noite de sábado na Ribeira ou no Beco dos Artistas. Que vão ao Bonfim toda sexta. Que vão ao Opô Afonjá receber a energia de Mãe Stella. Que vão à Igreja Universal toda terça participar da sessão do descarrego.

Que sambam gostoso nos partidos da Liberdade. Que gostam de ver a saída do Ilê no carnaval, e as demais festas que ocorrem durante o resto do ano na Senzala do Barro Preto. Que juntam os amigos e amigas de vez em quando para jogar conversa fora e comer acarajé no Rio Vermelho, em Itapuã e nas demais bancas espalhadas pela cidade. Que vão ao Vila Velha curtir e aprender com o Cabaré da Rrrrrrrraça e demais espetáculos do Bando de Teatro Olodum. Que aproveitam a rica, porém nem sempre acessível, vida cultural da cidade.

Gente que, nas palavras de João José Reis, “reagem, negociam, resistem, atacam, se juntam solidários, às vezes vencem, outras perdem, raramente desistem”. É para vocês que eu presto a minha homenagem e dedico essas palavras.

Animai-vos, povo bahiense! É tudo nosso!!

terça-feira, 8 de março de 2011

Por que eu não gosto de carnaval - Parte 2

Antes leia a parte 1

Motivos pessoais à parte, à medida que eu fui envelhecendo, lendo, estudando e aumentando o meu nível de criticidade, comecei a ver outros motivos para não ter a menor simpatia por essa festa. Vamos a eles: o carnaval de Salvador, ao contrário da propaganda feita pelas agências de turismo e demais setores comerciais que lucram absurdamente em uma semaninha de farra, já deixou de ser democrático e popular há muito tempo (se é que algum dia já o foi). Quem for endinheirado curtirá a festa com o maior conforto e segurança possíveis dentro das cordas dos blocos ou dos cada vez mais luxuosos camarotes (os mais badalados não vendem ingressos justamente para não correrem o risco – remotíssimo - de ter de aguentar um indesejável-atrevido descompreendido-que-não-sabe-o-seu-lugar lá dentro. O acesso é só para convidados). Quem não tem grana, está condenado a curtir a festa em espaços cada vez menores (pois a cada ano os camarotes avançam mais em direção à pista e o diâmetro do espaço delimitado pelas cordas aumenta), superlotados, e por aí vocês já podem prever o resultado dessa combinação: muita gente, pouco espaço, cervejas e otras cositas más na mente, música eletrizante... Os furtos, os assédios sexuais e a porradaria rolam soltos. E a Polícia, como sempre, quando vê a confusão, sai distribuindo cacetada em cima de quem encontrar pelo caminho como método de debelar e prender os briguentos no melhor estilo “bata primeiro e pergunte depois”.

A segregação sociorracial existente nessa festa aparentemente democrática é gritante e me revolta profundamente (racismo, onde?! No carnaval?!! Claro que não. Eu nunca vi nada disso. Todos brincam e se divertem harmoniosamente; o carnaval é uma festa de todos. Esse Rogério é um insuportável mesmo. Está a cada dia pior. Depois que passou a andar com esses vagabundos desocupados do Movimento Negro, pegou essa mania triste de ver racismo em tudo). Não estou dizendo que isso é invenção do carnaval, pois não é. O carnaval é um produto da sociedade em que vivemos, e se esta é desigual, racista, machista, excludente, hierarquizada, autoritária e violenta com os mais pobres, nada mais lógico que o carnaval reproduza tudo isso. O impacto só é maior porque o espaço onde essas coisas acontecem é muito pequeno, mas os camarotes, os cordeiros e demais subalternizados existem durante o ano inteiro. Basta observar como e onde são feitas as festas para os pobres e como e onde são feitas as festas para os ricos.

Poderia citar vários exemplos de racismo no carnaval, mas me deterei apenas em alguns. É revoltante ver pessoas que literalmente acampam nas ruas durante todo o período da festa para ganhar uns trocados vendendo cerveja, refrigerante, água e churrasquinho. É duro saber que aquelas pessoas precisam morar na rua durante uma semana com os seus filhos pequenos para tirar o sustento da família. Além de ter de pagar uma fortuna com o licenciamento na prefeitura para não ter as suas mercadorias apreendidas (quem pensa que o rapa acabou está muito enganado), elas ainda têm de enfrentar a marcação dos prepostos da Vara da Infância e da Juventude que querem autuar os pais e mães das crianças por terem-nas exposto a condições insalubres e a situações de perigo iminente às suas integridades físicas (que palavreado bonito!). É muito fácil perseguir as pessoas que levam os seus filhos para o local de trabalho por não ter com quem deixá-los, quando esse mesmo Estado que só aparece na hora de cobrar impostos e punir quem não cumpre os seus ditames tem a obrigação de construir creches dignas para que as trabalhadoras possam deixar as suas crianças em um local seguro enquanto estiverem trabalhando – e não as constrói.

(Quando eu falo isso, sempre aparece alguém para dizer que essas pessoas podiam deixar as crianças com uma vizinha, como se a vizinha tivesse obrigação de tomar conta dos filhos dos outros.)

Outro exemplo escandaloso da discriminação racial no carnaval é a já conhecida situação dos cordeiros. Trata-se de pessoas desempregadas ou subempregadas (o exército industrial de reserva, para usar um jargão marxista) que são cooptadas pelos blocos para segurar as cordas e separar aqueles que pagaram valores absurdos por um abadá da vil canalha preta e favelada que só vai à rua causar tumulto e roubar os outros. Tem carnaval lá em Cajazeiras, na Liberdade e no Subúrbio Ferroviário, então por que essa gente não fica lá ao invés de ir à Barra incomodar a gente de bem que só quer se divertir em paz?

Eu já sonhei várias vezes com o ano em que os cordeiros se negariam a segurar corda no carnaval, só para ver o que os donos de bloco fariam diante disso. Entretanto, é bom manter os pés no chão e não viajar na maionese. O desemprego estrutural da nossa sociedade existe justamente para reduzir essas pessoas a uma situação tão aviltante, a ponto de elas se verem obrigadas a aceitar fazer qualquer coisa em troca de uma micharia. Ninguém dá ponto sem nó.

Em conversa com amigos e vizinhos (alguns deles que já trabalharam como cordeiros), soube de casos em que um playboyzinho dentro do bloco agrediu uma pessoa que estava fora das cordas e, depois, correu para perto do trio e deixou o cordeiro lá de apara-bala. Ou seja, além de trabalhar em condições subumanas (pouca água, comida insuficiente, sem um calçado adequado [que os blocos teriam obrigação de dar, mas entraram na Justiça atrás de respaldo legal para descumprir a legislação trabalhista], ouvindo aquele som insuportavelmente alto com risco de desenvolverem problemas auditivos), essas pessoas ainda têm de servir de colete à prova de balas da playboyzada. E depois ainda há quem culpe exclusivamente os pobres pelos altos índices de violência no carnaval.

Não posso deixar de citar que, além de tudo isso que eu descrevi acima, os cordeiros e cordeiras (sim, há mulheres que também trabalham com isso) sofrem para receber os seus pagamentos depois que a festa acaba. Todo ano, a coisa se repete: filas enormes se formam nas portas das sedes dos blocos compostas por pessoas que trabalharam, mas não receberam os seus pagamentos na data previamente combinada. E quando elas se valem do direito legítimo de protestar contra esse descaso com que são tratadas, a Polícia ainda aparece lá para baixar a porrada em todo mundo sob o pretexto de “manter a ordem e conter os excessos”.

Um dos meus cunhados é segurança profissional e trabalha no carnaval há um bom tempo. Ele apareceu aqui em casa no domingo, e, como ainda estava escrevendo este texto, aproveitei para conversar com ele sobre o assunto a fim de obter algumas informações sobre o trabalho dele durante a festa. Contou ele que, já há alguns anos, integra a equipe que faz a segurança de cinco homens que vêm dos Estados Unidos anualmente para se esbaldar em Salvador. A miséria já começa na saída do aeroporto, pois os turistas têm de sair em comboio com escolta armada se não quiserem correr o risco de serem assaltados já na saída do bambuzal (passagem que fica a cerca de duzentos metros do portão de desembarque do aeroporto). Em outras palavras, ele, que é pai de cinco filhos, tem de fazer a proteção dos gringos, enfrentar os bandidos à bala se necessário e correr o risco de morrer e deixar a mulher sozinha com essa pequena trupe para que os estrangeiros não sofram um arranhão (ai do meu cunhado se acontecer alguma coisa com um desses caras aqui no Brasil). Como se não bastasse, ainda de acordo com ele, os turistas não param quieto: vão ao Campo Grande, depois de cinco minutos querem ir à Barra, depois querem voltar para o Campo Grande, em seguida ir para Ondina... Para finalizar, ele ainda disse que os gringos usam muita droga para ficarem acordados e não perderem um minuto sequer da gandaia, e para isso pedem aos seguranças para comprar cocaína e trazer prostitutas para eles. Ainda bem que o meu ramo de trabalho é outro, pois se eu não uso drogas proibidas por lei justamente para não ter de ir à boca-de-fumo comprar para mim, eu jamais iria à boca-de-fumo comprar droga para safado nenhum. Não iria, e não irei.

***

O circuito do Campo Grande-Praça Castro Alves está sendo progressivamente desprestigiado. Os blocos mais badalados já não desfilam mais lá. Alguns blocos afro e afoxés, que só desfilavam neste circuito em nome da tradição, já migraram para o circuito Barra-Ondina inclusive por questão de sobrevivência. Como as emissoras de televisão só querem ficar na Barra (só colocam alguns gatos-pingados na Avenida para cumprir tabela), e aparecer na TV é uma maneira de se mostrar e atrair a atenção do público assim como anunciantes (uma vez que os blocos afro estão sendo progressiva e muito sutilmente eliminados da festa via asfixia financeira), a migração é de certa forma até justificada. O empresariado carnavalesco baiano até já tentou acabar com o circuito Osmar (batizado assim em homenagem a Osmar Macedo, um dos inventores do trio elétrico), mas desistiu por causa do forte alarde feito pelos defensores da tradição; afinal de contas, disseram eles, foi na Avenida que tudo começou e, portanto, não é justo que esse circuito seja extinto. Isso não significa que os empresários foram demovidos da ideia, eles simplesmente só estão esperando os tradicionalistas morrerem para executar o seu plano em paz e sem risco de passarem por tiranos e impopulares.

O maior símbolo do descaso com o circuito tradicional da festa (o Barra-Ondina surgiu inicialmente como alternativo) é o encontro de trios, que acontecia na quarta-feira de Cinzas, que já não é realizado há mais ou menos cinco anos e que foi substituído pelo arrastão de Carlinhos Brown e Ivete Sangalo (ô mulherzinha sem graça!). As estrelas da axé music já não se apresentam mais lá com frequência. Os patrocinadores já não exibem mais as suas marcas no trajeto, pois a quantidade de pessoas que veriam a publicidade cai ano após ano, além do fato de as redes de televisão não se interessarem mais em fazer a cobertura do evento na Avenida.

Diante disso, fica notório que foi-se o tempo em que as pessoas traziam as suas cadeiras de casa e colocavam na rua para ver os blocos passarem. Cada vez mais, o carnaval de Salvador torna-se artigo de luxo, e os pobres só podem ir ou para trabalhar ou para tomar porrada da Polícia. Como disse Thaíde e DJ Hum, “que tempo bom, que não volta nunca mais”.

sábado, 5 de março de 2011

Por que eu não gosto de carnaval - Parte 1

Eu não gosto de carnaval. Em algumas vezes que eu disse isso, dentro e fora de Salvador, fui olhado com uma cara de estranheza e incredulidade, como se quisessem dizer “esse cara é baiano e não gosta de carnaval?! Impossível! Ele só pode estar de sacanagem”. Mas eu me pergunto: por que as pessoas acham que todo baiano TEM obrigação de gostar de carnaval? Todo russo gosta de vodka e de balalaica? Todo alemão gosta de chucrute ou salsichão? Todo japonês gosta de saquê? Todo estadunidense gosta do basquete da NBA, de comer aqueles hambúrgueres enormes e gordurosos e de usar aquelas roupas do pessoal do rap? Faz sentido acreditar que todas as pessoas têm obrigação de gostar de tudo o que dizem que as pessoas daquele grupo devem gostar? Fica a dúvida.

A minha rejeição não é por má vontade, do tipo “não vi e não gostei”. Eu já tentei gostar de carnaval, mas não consegui. Quando eu era bem criança, minha mãe inventou de me levar ao carnaval junto com o meu irmão mais velho. Até hoje, guardo na mente aquele mar de gente pulando no meu entorno, aquele misto de claustrofobia, dificuldade para respirar e desespero por não ter a menor condição de sair do meio daquela turba ensandecida. Meu irmão, coitado, levou uma puta pisada no pé desferida por um homem enorme, e em consequência disso não agüentou nem andar de volta para casa. Teve de ser carregado pela minha mãe. Tempos depois, eu relembrei o fato e perguntei à minha genitora por que ela fez aquilo comigo. Ela disse que nos levou ao carnaval porque trabalhava muito (isso é verdade), não tinha tempo (nem oportunidade) para dar um passeio conosco e porque foi uma das poucas chances que teve de nos levar a um lugar diferente. Porra, mas logo no carnaval? Será possível que não havia lugares mais agradáveis – e recomendáveis - para duas crianças passearem e se divertirem? Se eu tivesse filhos e não tivesse tempo de sair com eles, eu jamais os levaria àquele pandemônio quando tivesse uma brechinha na minha agenda.

Por causa disso, passei a infância e a adolescência inteiras traumatizado com o carnaval. Contudo, esse trauma vinha acompanhado de uma enorme curiosidade. Até os 17 anos, sempre ouvi as opiniões mais dicotômicas possíveis acerca da folia momesca; percebi que carnaval é algo que as pessoas amam ou odeiam, e que não há meio termo. Carnaval é muito bom, carnaval é uma merda, eu adoro carnaval, eu detesto carnaval, eu não vejo a hora de começar a festa para eu cair na gandaia, eu não vejo a hora de essa bosta acabar para a cidade voltar ao normal... Essa marcante diferença de opiniões exerceu forte pressão na minha cabeça durante a minha adolescência, e eu resolvi que era hora de enxergar a desgraceira com os meus próprios olhos.

Quando completei 18 anos, em 1998, combinei com um colega de escola para irmos ao carnaval. No dia anterior, ele ligou para mim e disse que não conseguiu dinheiro com a mãe dele para sair, pois ela é evangélica e não daria grana para o filho se perder na festa do demônio. Como já estava decidido a tirar as minhas próprias conclusões, e ninguém me demoveria disso, resolvi que iria sozinho – e fui. Já no ônibus, percebi que carnaval de fato não é festa para qualquer um. Não sei o que acontece, mas as pessoas ficam tresloucadas durante os dias de festa: uma gritaria desgraçada dentro do ônibus (não que as pessoas viajem em silêncio costumeiramente, é claro), gente sentada no encosto da cadeira com os pés no assento, vários fumando, outros bebendo, alguns tocando, pegando, mexendo e dizendo impropérios às mulheres... Enfim, uma zona infernal.

Passado o sufoco de descer na Estação da Lapa e encontrá-la tomada de gente, com dificuldade para dar um simples passo, consegui chegar ao circuito da festa. E as minhas expectativas se confirmaram: carnaval não é festa para mim mesmo! Os quebra-paus aconteciam por segundo. Em um dado momento, tive de ficar mais de meia hora junto a um posto da Polícia Militar para não correr o risco de ser agredido por um (ou mais de um) daqueles monstros. Houve um que me viu sozinho, segurou meu braço e tentou me jogar no meio de um fuzuê, mas eu alterei a voz (não sei de onde tirei tanta coragem) e ordenei ao safado que largasse o meu braço. Mas nada disso me deixou mais apavorado quanto uma cena que vi alguns minutos depois: estava andando pelo Campo Grande, nas imediações do Hotel da Bahia, quando vi um grupinho se estapeando. Um conseguiu acertar um soco no outro, e esse outro caiu. Quando este colocou as mãos no chão para se levantar, recebeu um violento chute no tórax do mesmo cabra que o derrubou. Ao ver isso, os amigos do nocauteado correram para protegê-lo e vingar as porradas dadas pelo valentão. Quando este correu para fugir, se bateu com uma guarnição de cinco soldados da tropa de choque da Polícia Militar (um maior e mais parrudo do que o outro) e caiu. Ato contínuo, um dos soldados pegou o sujeito pelo queixo, ergueu e soltou. Eu nem quis mais ver o resto da cena.

No outro dia, como não tinha mais dinheiro para ir ao centro, resolvi ir a uma festa (mal) organizada em Cajazeiras, bairro onde moro. Foi aí que a coisa desandou para o meu lado, e me fez ter certeza de que, durante esse estado de sítio vigente por uma semana na cidade, eu só tenho duas alternativas: ou ir para um lugar bem longe e só voltar quando o parnavueiro acabar, ou ficar trancado em casa assistindo a filmes sem me atrever a colocar o nariz para fora da janela (que é o que eu estou fazendo neste ano). Primeiro, um grupo de homens queria me dar porrada por achar que eu estava dando em cima da namorada de um deles (e eu não estava). Depois, os policiais estavam espancando as pessoas por nada. Bastava que um meganha não fosse com a cara de uma pessoa para desferir uma cacetada ou um tabefe contra ela. Por fim, veio a desgraceira: após ter dançado e pulado demais, parei num lugar mais afastado para sentar e descansar um pouco. Cerca de cinco minutos depois, fui atingido à traição na altura do rim esquerdo por um forte chute desferido por um drogado. Ao tentar fugir dos covardes (ele estava acompanhado por outro sujeito, também drogado), caí e torci o meu pé esquerdo. Passei cerca de duas semanas com o pé enfaixado.

Isso aconteceu no dia 24 de fevereiro de 1998, e neste dia eu jurei para mim mesmo que jamais colocaria o meu pé em um festejo carnavalesco. Até assistia às transmissões pela televisão, mas, neste ano, resolvi que nem isso eu vou fazer. Pouco me interessará as performances das estrelas da axé music; nem me preocuparei com a macaquice que Durval Lélis inventará para atrair a atenção dos foliões e os olhares da mídia, pois eu aproveitarei o meu tempo com coisas bem mais interessantes.

Ficarei em casa, assistindo a filmes, e cagarei para o que estiver acontecendo no centro da cidade. Só nos últimos dois dias, eu já assisti a cinco.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Você tem medo de morrer?

Diálogo em uma banca de acarajé com a minha tia Antônia no dia 22 de dezembro de 2010:

Eu: Depois de beber essa cerveja, bateu uma vontade de fumar um charuto!

Ela: O quê?! Meu sobrinho, não faça isso. Fumar é prejudicial à saúde. Foi o charuto que acabou com a vida da sua avó. Você é muito jovem para estragar a sua vida assim.

Eu: Porra nenhuma, minha tia. Por que a senhora acha que eu me preocuparia com algo que pode me matar daqui a 25-30 anos quando há uma caralhada de coisas que podem me matar agora? A morte chegará para todos, fumantes ou não-fumantes. E mais: antes de condenar os hábitos das outras pessoas com a justificativa de que elas estão estragando as suas vidas, a senhora deve fazer uma autoanálise e saber quais são os prazeres dos quais a senhora não abre mão em prol de uma vida mais longa.

Por que a senhora pode tomar cerveja e eu não posso fumar um charuto, sendo que a cerveja é uma droga tão potente e destrutiva quanto o tabaco? A senhora não quer abrir mão do seu prazer de tomar uma cerveja, mas se acha no direito de colocar o dedo na minha cara e dizer que eu não devo mais fumar um charuto. A senhora acha isso justo?

Ela: Eu só estou falando isso pro seu bem. Você é muito jovem, e isso não é bom. Além disso, você é professor e, portanto, não é legal ser visto fumando charuto por aí.

Eu: O que uma coisa tem a ver com a outra? Qual é a incompatibilidade que há entre a minha profissão e o fato de eu gostar de fumar um charuto? Minha tia, o caráter de uma pessoa não se avalia pelo tipo de substância que ela consome. Na faculdade, eu tive professores, doutores, famosos, renomados, prestigiadíssimos nas suas áreas, que fumam maconha tranquilamente – e eu imagino que isso não influencia em nada o desempenho profissional deles. O que nós precisamos fazer é mudar a nossa atitude com relação a certas coisas, isto é, parar de julgar as pessoas pelas substâncias que elas consomem. Se eu disser em alto e bom som que gosto de tomar cerveja, ninguém falará nada. Mas se eu disser, por exemplo, que gosto de fumar maconha, todos me censurarão e passarão a me tratar como um pária. Por que isso?

O álcool é uma droga bem mais destrutiva do que a maconha. Grande parte das mortes no trânsito acontece devido a motoristas que ingeriram álcool antes de dirigir, não maconha. A maioria dos homens que agridem suas esposas e filhos em casa faz isso depois de ter consumido álcool (não que eu ache que a culpa é da cachaça, é claro; álcool é agravante, não atenuante), não fumado maconha. Se eu disser que não bebo e não fumo, muita gente dirá que eu sou da geração saúde e me terá no mais alto conceito; se eu disser o contrário, o meu caráter será imediatamente colocado sob suspeita. Hitler não bebia e não fumava, tinha verdadeiro asco a vícios, e no entanto fez o que fez. E aí?

Ela: Eu só estou falando assim porque o charuto pode te levar à morte. Afinal de contas, a sua avó morreu por causa disso.

Eu: E a cerveja que a senhora toma não pode te matar?! Eu não tenho medo da morte, minha tia. Quem fuma charuto morre, e quem não fuma morre do mesmo jeito. Além do mais, a senhora, ao tomar uma cerveja, corre o mesmo risco de desenvolver doenças e morrer em consequência delas que eu corro ao fumar um charuto. Por que a senhora não para de beber então?

Nós temos de parar de nos preocupar com essas besteiras e curtir a vida, pois esta é muito curta. Pouco importa o tempo que vivamos (seja 10, 20, 30 [minha idade], 56 [a idade dela], 70, 80, 90...); ninguém terá tempo para ver e fazer tudo o que quer. Jorge Amado morreu aos 88 anos, quatro dias antes de completar 89, e antes de morrer disse que tinha consciência de que não tinha visto nem 10% das coisas que queria ver, lido um milésimo dos livros que queria ler e escrito todos os textos que gostaria de escrever. Seja lá o tempo que tenhamos em cima dessa terra, nós temos que aproveitar e nos divertir. Se a senhora tem tanto medo de morrer assim, a senhora não deveria comer nada do que habitualmente come, pois a nossa alimentação diária é cheia de veneno; se a senhora quer viver muito, não deveria nem ter saído de casa para não correr o risco de ser atingida por um ônibus desgovernado e morrer esmagada. Ou a senhora acha que essas coisas só acontecem com os outros?

Um ex-estudante meu morreu aos 20 anos de idade, de câncer de pulmão, e a família dele disse que ele nunca colocou um cigarro na boca (as pessoas acham que só os fumantes podem desenvolver câncer de pulmão, bem como só os alcoólatras podem ter cirrose). O pai de um amigão meu não bebia, não fumava, não comia gordura, não estava acima do peso, não perdia noite de sono, praticava esportes regularmente, isto é, cumpria todas as prescrições de uma vida longa e saudável. Um belo dia, ele saiu de casa para pedalar de bicicleta, como de costume, e, no meio do trajeto, teve um ataque cardíaco fulminante e morreu na hora. Nenhum dos dois fumava charuto. Portanto, eu não aceito que ninguém venha de dedo em riste para cima de mim e diga como eu devo viver.

Além do mais, de que adianta viver muito e não ter história pra contar? De que adianta viver muito e se reprimir a vida inteira? Eu poderia ficar em casa o tempo inteiro para não correr risco de morrer antes da hora (se é que alguém está livre de sofrer um acidente doméstico e morrer em consequência dele, é claro), mas quantas experiências de vida eu perderia se fizesse isso? Se um charuto me relaxa quando eu estou por demais estressado, por que eu o dispensaria?

Ela: É verdade. Você tem razão.

***

E vocês, o que pensam a respeito disso? Quero saber.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Que o ano de 2011 seja o ano da minha, da sua, da NOSSA mudança.

É sempre a mesma coisa. As pessoas se sacaneiam o ano inteiro, se xingam, se odeiam, mal olham para as caras umas das outras (quando olham), mas, no final de ano, subitamente elas ficam boazinhas, solícitas, entregam presentes como forma de compensar o desprezo e o descaso rotineiros (é o “espírito natalino”); depois que passa o Natal, todas elas vestem branco (para trazer paz), vermelho (amor), amarelo (dinheiro), verde (esperança); pulam sete ondinhas, entregam presentes à Iemanjá (e poluem o já bastante poluído meio-ambiente), colocam caroços de romã na carteira, fazem promessas sabendo que não as cumprirão, arquitetam planos irrealizáveis e congestionam as linhas telefônicas à meia-noite para desejar Feliz Ano Novo aos outros (quem precisar fazer uma ligação de urgência nesse horário estará lascada). Nossa, que saco!

Eu não sei o que leva as pessoas a acreditar que uma simples mudança de dia causará transformações profundas na nossa vida cotidiana. Que o mundo se tornará, como num passe de mágica, um lugar lindo, idílico, sem desigualdades, miséria, violência, corrupção, quase um Jardim do Éden; que todos (TODOS!) os nossos problemas se acabarão quando o ponteiro do relógio marcar o primeiro minuto do ano seguinte. Na verdade, eu até sei: é que as pessoas levam uma vida tão desgraçada, são tão sacaneadas, roubadas, maltratadas, desprezadas, invisibilizadas, e por conta disso é necessário parar um momentinho para alimentarem aquela esperança falaciosa de que tudo vai melhorar – ainda que todos tenham consciência de que isso é mentira. E depois ainda há quem fique puta com a minha cara quando eu digo que as pessoas gostam de ser enganadas.

A passagem de 31 de dezembro para 1º de janeiro é uma mudança de dia igual a todas as outras que acontecem ao longo do ano. Uma simples mudança de calendário não causará impacto nenhum na minha vida; na de vocês, eu não sei. Eu me sentiria um completo babaca se eu fizesse toda essa papagaiada e acreditasse que tudo será diferente do que foi na minha vida em 2010... só porque é 2011!!!

Se vocês querem que o mundo seja um lugar melhor, mudem a vocês mesmos primeiro. Beber é bom (e eu gosto), festejar é bom, se divertir é maravilhoso (e necessário), mas não é nada disso que vai trazer os benefícios que queremos. Melhor, o ano não vai mudar enquanto nós (não tire o seu da reta) continuarmos repetindo os mesmos erros do passado. As mesmas apatias do passado. O mesmo descaso do passado. A mesma passividade do passado. O mesmo conformismo do passado. E isso pode ser feito em qualquer dia, não só no último dia do ano.

É por isso que eu digo a toda pessoa que me deseja um Feliz Ano Novo que o ano será novo, mas os problemas e os desafios a enfrentar serão os mesmos. Portanto, inclua na lista de desejos para 2011 um pouco mais de coerência, vergonha na cara e vontade de mudar para que as coisas sejam do jeito que vocês querem. Não queiram que os outros mudem primeiro para vocês mudarem depois. Deem o exemplo.

Um mundo melhor não virá com um simples toque da varinha de condão, mas com vontade, disposição e, sobretudo, coragem para fazer as mudanças acontecerem. E a mudança tem de começar agora, já, neste exato momento, pois é público e notório que quem deixa para parar de fumar na segunda-feira não para de fumar nunca.