Ontem, Salvador fez aniversário: 462 anos. Não publiquei o texto no dia 29/03 porque não pude escrevê-lo em tempo hábil. Mas, como diz o costume, o que vale é a intenção. Como eu moro e transito na cidade todo dia, não faz muita diferença o fato de ter publicado os meus escritos um dia depois. Eu acho.
Esse papo de exaltar as belezas da cidade, as praias paradisíacas, o carnaval, a culinária, a religiosidade (de uma forma bastante estereotipada, diga-se de passagem), a terra do axé, já deu. Não estou aqui para falar disso. Afinal de contas, eu não sou agente de turismo.
O que eu quero mesmo é fazer uma homenagem ao povo dessa cidade. Não à parcela branca e rica que odeia e repudia a herança cultural africana, que acha que ser preto só é bonito no Carnaval (e olhe lá), mas se utiliza dela (e deles) sem o menor pudor para se promover ou auferir algum benefício. Se os “bem-nascidos” cagam para mim, eu também cago (e continuarei cagando) para todos eles.
Quero exaltar as pessoas que ralam todo dia para sobreviver nessa selva. Que saem de casa sem saber se retornarão. Que têm de aguentar tudo o quanto é miséria em nome do sustento próprio e da sua família. Que pegam ônibus lotado todo dia de manhã para ir trabalhar e à noite na hora de voltar para casa. Que, depois de terem sido exploradas o dia inteiro, ainda encontram energias para estudar à noite e sonhar com um futuro melhor. Que vivem num lugar onde os mais ricos ganham vinte e cinco vezes mais do que os mais pobres. Que têm de morar numa cidade onde morrem em média de 25 a 30 pessoas assassinadas por fim de semana – e que há pessoas que acham isso normal. Que têm de driblar as arapucas que o racismo impõe à maioria da sua população, pois a Bahia só é a terra da felicidade nas propagandas da prefeitura e das agências de turismo. Que ouvem dizer que têm o carnaval mais democrático do mundo, mas observam uma minoria curtindo o melhor do luxo enquanto os excluídos têm de acampar na rua durante uma semana para ganhar algum trocado vendendo cerveja e churrasquinho, catando latas e garrafas e segurando corda nos blocos. Que veem um cantor receber R$ 2 milhões para tirar a barba em uma ação promocional de uma marca de barbeadores, enquanto muita gente passa fome. Em que um bloco chega a cobrar R$ 1.200 por um abadá, mas paga uma diária de R$ 30 a um cordeiro (quando paga) sem dar ao cara água, protetor de ruído, luvas e o direito de usar o banheiro do trio. Que vive num apartheid sem as leis do apartheid.
Pessoas que, infelizmente, ainda têm de dormir em uma fila no posto de saúde para pegar uma senha e ser atendida daqui a dois ou três meses (isso se o médico não faltar no dia da consulta, é claro). Que, por não ter grana, têm de colocar os filhos e filhas para estudar numa escola pública lenhada, sem professores, bibliotecas, computadores, merenda, e que ainda ouvem que os seus filhos não têm bom desempenho escolar porque são burras e desinteressadas (“elas não querem nada”). Que saem todos os dias às ruas para montar a sua banca de camelô, vender água, doces, picolé e caneta nos ônibus e DVD pirata na Lapa, na Avenida Sete, na passarela do Iguatemi e na Estação Rodoviária. Que fazem quatro a cinco faxinas por dia para conseguir dar o que comer às suas crianças. Que limpa vidro de carro nas sinaleiras. Que aguentam os passageiros malas quando estão dirigindo e passando troco dentro dos ônibus. Que têm de aguentar motoristas escrotos que não param no ponto, que dão banho de lama nas pessoas só de sacanagem, e cobradores mal-educados e mal-humorados.
Que começam a tremer de medo de a casa construída no morro com tanto sacrifício desabar quando caem os primeiros pingos de chuva, e depois ainda têm de aguentar o pessoal da SUCOM dizer para elas não ocuparem as encostas quando o Estado tinha a obrigação de dar-lhes moradia decente. Que fumam crack nas ruas e debaixo dos viadutos para tentar esquecer a condição de subalternidade, exclusão e invisibilidade a que são impostas. Que vendem pequenas quantidades de droga nas ruas por não encontrar outra oportunidade de emprego, mas são apresentadas como megatraficantes perigosos no Na Mira e no Se Liga Bocão. Que carregam compras nas portas dos supermercados em carros de mão para ganhar R$ 3 e ainda serem chamadas de preguiçosas. Que vendem caldo de cana nas ruas. Que vendem café e cigarro nas guias de cafezinho (uma mais criativa do que a outra). Que se viram para não sucumbir.
Que, mesmo tendo de enfrentar todas essas mazelas, ainda encontram maneiras de se divertir (afinal, ninguém é de ferro). Que se divertem no pagodão por essa ser a única possibilidade de diversão que o pobre pode pagar (inteira R$15, casadinha R$20. Junta dez meu, dez seu e vamos embora). Que vão ao Barradão ou a Pituaçu ver o time do coração jogar, pagam um ingresso caro para um jogo que começa às 22h e mofam no ponto de ônibus depois que o jogo acaba tarde da noite. Que curtem Gerônimo toda terça-feira na Escadaria. Que não abrem mão de tomar um cravinho no Bar do Cravinho. Que frequenta, aprecia e declama suas poesias toda quarta-feira no Sarau Bem Black do Bar Sankofa (salve Nelson Maca!). Que vão, pelo menos uma vez por mês, ao Tia Célia comer aquela feijoada. Que curtem as praias da cidade, apesar do cenário desolador que se formou após a derrubada das barracas. Que curtem a noite de sábado na Ribeira ou no Beco dos Artistas. Que vão ao Bonfim toda sexta. Que vão ao Opô Afonjá receber a energia de Mãe Stella. Que vão à Igreja Universal toda terça participar da sessão do descarrego.
Que sambam gostoso nos partidos da Liberdade. Que gostam de ver a saída do Ilê no carnaval, e as demais festas que ocorrem durante o resto do ano na Senzala do Barro Preto. Que juntam os amigos e amigas de vez em quando para jogar conversa fora e comer acarajé no Rio Vermelho, em Itapuã e nas demais bancas espalhadas pela cidade. Que vão ao Vila Velha curtir e aprender com o Cabaré da Rrrrrrrraça e demais espetáculos do Bando de Teatro Olodum. Que aproveitam a rica, porém nem sempre acessível, vida cultural da cidade.
Gente que, nas palavras de João José Reis, “reagem, negociam, resistem, atacam, se juntam solidários, às vezes vencem, outras perdem, raramente desistem”. É para vocês que eu presto a minha homenagem e dedico essas palavras.
Animai-vos, povo bahiense! É tudo nosso!!
Rogério, gosto da sua fala, pois sabes ser crítico e sucinto com as palavras. És feliz quando se questiona o que comemorar nos 462 da cidade de Salvador. Uma cidade que segundo a propaganda vendável das agências de turismo e do governo do estado é de gente bonita, de riqueza cultural abrangente, em que é realizada a maior festa aberta ao público do mundo, como é o carnaval. Mas que em contraponto se faz caótica quando possui um sistema de transporte público deficiente, não há emprego e a maioria do mercado é composto de atividades informais, não há saúde nem educação de qualidade, o sistema de moradia não é satisfatório.
ResponderExcluirTudo que aqui é exposto remonta aos ideais de uma cidade colonial. Não nos resquícios, mas na própria organização da cidade. O que me faz pensar que Salvador hoje nada mais é que a representação explícita no séc. XXI do que fora em 1888, logo após o 13 de maio. Uma cidade de negros "libertos" e brancos burgueses, e que não possuem condições dignas de vida.
Só resta o estado de sobrevivência.
Olha, eu de novo aqui!
ResponderExcluirPra variar, seu "textículo" (não me provoca hein, Rogério!) está muito bom, reflete o que muitos pensam e não têm a oportunidade de escrever, outros também pensam, mas às vezes nem escrever sabem (e não falo dos analfabetos) e há aqueles que apenas sentem tudo isso na pele, eu presto a minha homenagem a este povo ao qual também pertenço e respeito. vamos continuar nessa luta, chamando a atenção quando colocamos o dedo nas feridas cotidianas e trabalhando em prol das resoluções delas.
Grande abraço
Yara Santiago
sinto sua falta em um espaço com mais visibilidade, é sempre assim , os nossos sempre buscando um meio de ser visualizado, pois "os melhores " escritores estão nas supostas revistas de grandes nomes, me sinto mjuito comtemplada com suas palavras , pois aquele suposto "show de Graça " da prefeitura custou dois meses de salários não pagos aos funcionários da prefeitura tercerizados, além de ser uma miseria que a prefeitura paga aos seus funcinarios ainda atrasa 2 meses para fazer uma suposta festa de aniversario para a cidade .só lamento, mas essa tambem éa minha cidade.
ResponderExcluirMassa Professor, super reais as suas críticas.São discussões como essa, que está faltando ser inserida nas escolas públicas de SSA,e não a apresentações de visões românticas da nossa "bela cidade". Mas é fato que o sistema nunca deixara que elas penetrem no meio acadêmico do ensino médio.
ResponderExcluirOdara!
Homenagem maravilhosa!! Me senti valorizada.
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