Está definido: a partir de hoje,
o valor da passagem de ônibus em Salvador passará de R$ 2,50 para R$ 2,80. A
imprensa passou duas semanas fazendo terrorismo psicológico com a população da
cidade sobre um suposto aumento para R$ 3,15. Um ou dois dias atrás, alguns
jornais anunciaram que o aumento seria bem abaixo desse valor e, ontem, foi
anunciado o valor definitivo. Um absurdo, pois, com esse aumento, o valor da
passagem se tornou um dos mais altos de toda a região Nordeste. Além do mais,
nós sabemos muito bem o que as empresas de ônibus oferecem em troca desse
aumento exorbitante: veículos precários, em péssimo estado, sem nenhum
conforto, sujos, insuficientes para atender a demanda (são apenas 2.700 ônibus
rodando na cidade), horários infrequentes... Isso sem contar os motoristas e
cobradores mal-humorados e os passageiros mal-educados que entram no ônibus
gritando, falando alto e ouvindo som no celular ou nas caixas de som no último
volume, que só pioram o que já está ruim. Mas eu vou deixar isso de lado, pois eu
vim aqui para falar de outra coisa.
Muita gente está resignada com o
aumento, pois o valor ficou em R$ 2,80 ao invés dos R$ 3,15 anteriormente
anunciado. Ora, meu povo, não sejam idiotas! É claro que o SETPS (Sindicato das
Empresas de Transportes de Passageiros de Salvador, entidade criada para
defender os interesses dos donos das empresas de ônibus) não pediria e a Prefeitura
de Salvador não concederia um acréscimo escorchante desse. Vocês acham que as
pessoas que controlam as referidas instituições seriam bestas a esse ponto? Foi
declarado um aumento exagerado, para causar pânico nas pessoas, e, no final,
foi concedido um aumento um pouco menor para que as pessoas concluíssem que a
passagem não foi para R$ 3,15 e ficassem caladas. É aquela velha consolação do “pelo
menos não saiu tão caro” - como se esse valor não fosse suficientemente caro em
comparação à qualidade de serviço oferecido.
Se vocês
quisessem vender um produto qualquer, vocês pediriam o preço exato que o
produto vale? Claro que não! Ninguém seria burro a esse ponto. Qualquer pessoa minimamente
inteligente colocaria um preço maior, para que as possíveis compradoras
reclamassem, iniciassem uma negociação, e você pudesse baixar gradativamente o
preço até chegar ao valor que você acha merecido pelo produto. O SETPS e a
Prefeitura de Salvador fizeram a mesmíssima coisa.
Para as pessoas conformadas, que
estão dizendo que foi bom, pois, afinal de contas, foram só trinta centavos de
aumento, eu faço uma pergunta: vocês já contabilizaram quanto esse aumentozinho
de trinta centavos pesará no orçamento mensal? Não?! Então, eu vou ajudar: “supunhetamos”
que você pegue quatro ônibus por dia, dois para ir ao trabalho e dois para
voltar. Esse “aumentozinho” de trinta centavos resultará em mais R$ 1,20 por
dia. Por semana (na hipótese de que você trabalhe somente de segunda a sexta), você terá uma despesa adicional de R$ 6,00. Por mês, de R$ 24,00.
Agora, pense que você ganha pouco, precisa comer, pagar as contas, e ainda
colocar créditos no Salvador Card dos seus dois filhos que estudam longe de
casa e têm de pegar dois ônibus todo santo dia para ir à escola e voltar pra
casa. E aí? Já fez as contas? Em caso afirmativo, você ainda continua pensando
que foi só um aumentozinho de nada e que o pessoal está reclamando por
besteira? Fazendo tempestade em um copo d’água?
Vários protestos já vêm sendo
organizados há um bom tempo contra isso. Está circulando pelas redes sociais a
chamada para uma manifestação amanhã para
protestar contra esse aumento abusivo das passagens de ônibus. Tudo bem. A
causa é nobre, a iniciativa é louvável, os motivos são justos, mas nós já
sabemos muito bem como isso acabará: o governador mandará a PM baixar o cacete
em todo mundo (para manter a lei e a ordem, é claro), e a imprensa tratará de
jogar a população contra os manifestantes ao falar dos enormes
congestionamentos causados pelas passeatas. E tudo ficará como já está - na merda.
Desde que começou a correr à boca
pequena pela cidade a notícia do aumento das passagens de ônibus, eu venho
pensando em uma ideia que eu acho mais interessante e resolvi escrever esse
texto para coletivizá-la convosco. Que tal se nós fizéssemos um boicote ao
sistema de transporte coletivo de Salvador? Que ninguém pegasse ônibus amanhã?
Já sei: alguém disse (ou pelo menos pensou) que eu sou maluco, que eu devo ser
uma pessoa que não tem o que fazer, que parece que eu não sei que as pessoas precisam
trabalhar para sobreviver, que certamente eu não tenho filhos para criar (e eu não
tenho mesmo) e por isso posso me dar ao luxo de ficar em casa coçando e
cheirando sem fazer nada. Pois saibam que eu também trabalho, eu também pego
ônibus, eu também tenho de sobreviver e pagar as minhas contas, e eu não sou
maluco coisa nenhuma (será mesmo que não?). O boicote é uma estratégia bem
inteligente, uma maneira bem contundente de reagir contra uma empresa que cobra
preços abusivos sobre um determinado produto ou serviço ou desrespeita a sua
clientela – atacando-a no bolso. E vou dar um exemplo para vocês verem que eu
não estou falando abobrinha.
Eu já vinha pensando em escrever
sobre isso há um bom tempinho, mas como o psicólogo e coligado Valter DaMata já
cantou a pedra no Facebook, eu vou dar os créditos a ele para que
posteriormente ninguém me acuse de desonestidade intelectual. Nos Estados Unidos, do final do século XIX a meados do século XX,
havia um conjunto de leis racistas conhecidas como Jim Crow que determinava,
dentre outras coisas, a separação legal de brancos e negros nas escolas e no
transporte público. Aí está a grande diferença do racismo nos Estados Unidos e
na África do Sul durante o regime do apartheid em relação ao racismo no Brasil,
pois, nesses dois países, o racismo era declarado. Os racistas de lá falavam na
cara; mostravam logo quem eles eram e o que pensavam – o racismo estava escrito
nas leis, e por isso as pessoas podiam constatar a realidade e organizar o
contra-ataque. Lá, a população negra sabia quem era o seu inimigo. Aqui, não. O racismo é velado e negado a todo instante, apesar das
abissais disparidades entre brancos e negros e dos constantes casos de violência
racial que ocorrem por aqui. Não é por acaso que o antropólogo Kabengele
Munanga afirmou que o nosso racismo é um crime perfeito.
Na prática, as leis Jim Crow
significavam que brancos e negros eram obrigados a viajar em ônibus separados
em alguns estados. Já em outros, brancos e negros até podiam viajar dentro do
mesmo ônibus, mas com uma condição: as pessoas negras tinham de viajar no fundo
do ônibus, e se por acaso uma pessoa negra se sentasse no local reservado aos
brancos, ela seria obrigada a levantar e dar o lugar à pessoa branca. Se a
negra não fizesse isso, ela seria expulsa do ônibus a tapas e presa sob
acusação de ter violado a lei.
Em 1955, a organização liderada
por Martin Luther King Jr., à época já um conhecido líder da luta pelos direitos
civis nos EUA, em conjunto com outras organizações de luta pelos direitos civis, resolveram reagir contra esse estado de coisas. Membros da
organização foram à cidade de Montgomery, no estado do Alabama, para mobilizar
a população negra da cidade a lutar contra a segregação racial nos transportes
públicos. Depois de muito planejamento, chegou a hora de entrar em ação: uma
militante da organização de nome Rosa Parks, uma mulher de 42 anos que
trabalhava como costureira, foi designada para pegar um ônibus na cidade,
sentar-se no lugar reservado aos brancos e se negar a levantar. Foi o que ela fez.
Logo em seguida, entrou no ônibus uma pessoa branca que nem se deu ao trabalho
de pedir para Rosa Parks levantar (afinal, ela já deveria saber o que fazer e qual era o seu
lugar). Após alguns poucos segundos em pé e ver que ela permanecia
impassível, a pessoa branca se juntou a outras iguais a ela, arrancou-a do
assento à força e a expulsou do ônibus a tapas. Como se não bastasse, ela ainda
foi presa sob a acusação de ter violado a tal lei que a obrigava a dar o lugar
à pessoa branca.
Rosa Parks tendo as suas impressões digitas colhidas após ser presa em 01/12/1955.
Esse foi o estopim para a
decretação de um boicote ao sistema de transporte coletivo da cidade. A
população negra de Montgomery, que na época era de cerca de cinquenta mil
pessoas, foi convocada por King a não mais pegar ônibus enquanto essa lei
racista não fosse derrubada. Parecia impossível, mas foi exatamente isso que
aconteceu: a negrada da cidade passou estonteantes e inacreditáveis 386 dias
sem pegar ônibus. As pessoas iam à escola e ao trabalho a pé. Quem tinha carro
dava carona a quem não tinha. Quem não tinha carro organizou-se com outras
pessoas que também não tinham carro, juntaram o pouco dinheiro que tinham e fretaram
conduções – que eram duramente perseguidas pela polícia, diga-se de passagem. Pessoas
idosas, para lá dos 70 anos e com dificuldades de locomoção por conta do peso
da idade, deslocavam-se a pé para cuidar dos seus afazeres e, quando
questionadas sobre por que elas não deixavam esse protesto para as mais jovens,
respondiam que estavam andando hoje para que os seus netos não precisassem andar
amanhã.
O boicote começou no dia 1 de
dezembro de 1955 e durou até o dia 21 de dezembro de 1956. Diante dos fatos e
arrasados com os prejuízos, o empresariado resolveu pressionar as autoridades
do Alabama para que essa lei fosse revogada, pois só assim a população negra
voltaria a usar os ônibus da cidade. E foi isso que aconteceu: a lei foi
revogada e, depois desse dia em diante, as pessoas negras voltaram a pegar ônibus com a garantia
de que podiam sentar-se onde bem entendessem e não seriam agredidas, expulsas e
presas.
Já imaginaram se a população de
Salvador resolvesse fazer a mesma coisa? Em Montgomery, foram
necessários 386 dias; aqui, bastaria apenas uma semana. Nós não
precisaríamos fazer passeata, gritar, tomar porrada da polícia, congestionar o
trânsito, apedrejar os veículos, furar os pneus destes, queimar pneus velhos no
meio das avenidas da cidade, nada disso. Bastaria apenas todos e todas nós nos recusarmos a pegar ônibus enquanto o
valor da passagem não voltasse para R$ 2,50 (que já é caro demais, é bom que se
diga). A população negra de Montgomery em 1955 era de cinquenta mil pessoas;
Salvador tem uma população de dois milhões. Tentem dimensionar o tamanho do
preju que as empresas de ônibus daqui teriam se, no dia de amanhã, ninguém
pegasse buzu (até rimou). E que a galera permanecesse irredutível enquanto as autoridades
não tomassem uma providência. Já dimensionaram?
Eu entendo perfeitamente que há quem tenha os
seus compromissos inadiáveis, mas a nossa situação não mudará enquanto nós não
fizermos nada contra esse sistema desgraçado em que vivemos. Pois uma coisa é
certa: é impossível acabar com um regime de opressão apelando para os bons
sentimentos de quem nos oprime, pois quem nos oprime não tem bons sentimentos. O
pessoal do SETPS quer que a gente se lasque!!!
Steve Biko já disse que a arma
mais potente do opressor é a mente do oprimido. Enquanto nós permanecermos calados
e acreditarmos que o mundo é assim mesmo e não há nada que possa ser feito para
mudar, as coisas continuarão do mesmo jeito que estão. Libertem-se da
escravidão mental, pois ninguém, senão nós mesmos, pode libertar as nossas
mentes, como disse Bob Marley.
Nós temos poder para mudar essa
situação. Só nos resta tomar consciência disso e agir.
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