Acabei
de ler na internet a seguinte nota: “Marido ciumento faz corredora vaidosa adotar meião de futebol para ficar menos ‘pelada’”. O
texto conta o caso de Rosângela dos Santos, atleta brasileira dos
100m rasos, que, devido aos ciúmes do marido, funcionário da
Marinha, “decidiu”
calçar um par de meiões típicos dos e das praticantes do futebol
para “amenizar a nudez” durante as competições (!). Ele não
gostou de ver a mulher dele lá, com tudo de fora, exibindo o corpão
sarado para todo mundo ver, reclamou que a roupa usada por ela nas
competições é muito curta, e, como forma de “acalmar a fera”, ela resolveu colocar o tal meião. Ela ainda disse, de acordo com a
reportagem, que o marido falou que ela está até “mais bonita”
com o acessório extra, numa clara
tentativa de disfarçar o caráter invasivo e
desrespeitoso da “recomendação”.
Eu
não sei o que é mais grave: o marido dela ter imposto uma peça de
roupa ao vestuário para ela ficar “menos pelada” ou ela ter
concordado, aceitado e feito o que o marido/dono dela mandou “em
nome do amor”. E para completar, no final da nota, ela ainda diz
que o sonho dela é se tornar passista de escola de samba, mas a tia
dela não deixa por causa das roupas que uma passista (não) precisa
usar na hora de sambar.
Ou
seja, Rosângela faz o que o marido dela quer, o que a tia dela quer,
mas não faz o que ELA quer. A vida é dela, o corpo é dela, o sonho
é dela, mas ela renuncia a tudo isso para não desagradar a família.
Fico
me perguntando: quando (e se) ela dará um basta nisso tudo e passará
a vestir-se como quiser e fazer o que bem entender com a vida e o
corpo dela? Que sociedade é essa que deixa os homens viverem como
quiserem, mas a todo instante estão ditando normas e regras sobre o
corpo feminino? Por que um homem pode sair às ruas sem camisa,
exibindo o tórax bombado, mas uma mulher não pode exibir as pernas
em uma competição de atletismo?
Regina
Navarro já escreveu muito sobre isso, e eu não pretendo ser caixa
de ressonância dos textos dela (ou pelo menos eu me comprometo a
tentar não ser). O ciúme é um sentimento altamente destrutivo, mas
infelizmente é passado para nós como uma coisa positiva; há até
quem diga que “o ciúme é o perfume do amor”, um tempero a mais
na relação (como se fossem necessárias demonstrações constantes
de posse para uma pessoa se sentir amada). É nada mais do que um
conjunto de práticas criadas para controlar o corpo da mulher de um
modo menos indolor (se é que posso usar essa expressão). Controlar
as roupas, o decote da blusa, o tamanho do vestido, da saia ou da
bermuda, o uso de maquiagem, a cor do esmalte das unhas, o cabelo
solto ou preso, os horários, nada disso é visto como estratégia de
dominação. Nãão!!! É para o bem delas, pô! As mulheres não
sabem dirigir as próprias vidas, portanto nada mais natural que nós,
homens, donos da razão, a protejamos delas mesmas. Sabe como é, né,
mulher solta sem governo só faz merda!
Já
vi e ouvi vários comentários de e sobre mulheres que ficaram
revoltadas com os seus companheiros/namorados/maridos porque eles não
sentem ciúmes delas. Lembro de uma vez em que a minha mãe disse que
estava no ponto de ônibus e ouviu uma mulher dizer que o namorado
dela era um banana porque não sentia ciúmes dela. “Ele me deixa
usar a roupa que eu quiser. Eu posso usar vestido decotado, saia
curta, shortinho atochado e aquele panaca não fala nada”, disse
ela (de acordo com a minha mãe, é claro). E eu fiquei pensando:
porra, se ela tem liberdade para usar a roupa que bem entender e o
namorado não fala nada, por que ela está recriminando o
comportamento do cara ao invés de comemorar a conduta dele? O que
essa mulher quer afinal?
Algumas
mulheres parecem demonstrar que gostam e até veneram a ideia de
serem dominadas pelos seus “donos”, coisa que me deixa mais
assustado ainda por saber que elas mesmas acreditam que devem se
submeter aos desmandos do companheiro/namorado/marido porque “homem
é assim mesmo”. Há cerca de quinze anos, época em que eu ainda
era estudante secundarista, uma colega de escola tentou me convencer
por inúmeros argumentos, retirados principalmente da Bíblia, de que
a mulher tem que ser submissa ao homem. Diante dessa convicção, a
única coisa que me restou foi ficar calado.
Em
conversa com um amigo, ele disse que uma namorada dele queria porque
queria que ele sentisse ciúmes dela – e desse demonstrações
públicas disso, é claro. Quando ele disse que não faria escândalo
público ao vê-la conversando com outro homem porque ele não é
dono do corpo das mulheres que se relacionam com ele, e que, por
conta disso, ela tem o direito de conversar com qualquer pessoa, ela
simplesmente o dispensou. Eu nem ao menos a conheço, mas gostaria
muito de saber com que tipo de homem ela está se envolvendo agora.
Esse
discurso do ciúme como uma coisa boa e necessária a qualquer
relacionamento é presente nas nossas vidas porque é reforçado a
todo instante através das coisas mais banais (músicas, novelas,
filmes, histórias românticas, romances de banca de revista...). São
histórias tão batidas e rebatidas que as pessoas adotam isso como
parâmetros para as suas vidas e não conseguem se relacionar com
ninguém sem exercer controle sobre a outra/outro, sem exigir
relatório detalhado e circunstanciado das atividades diárias, sem
fuçar o celular, o email e o perfil da outra pessoa nas redes
sociais. Em entrevista à Revista Sexy de novembro de 2011, Carol
Nakamura, assistente de palco do Domingão do Faustão, declarou que
só namora um homem que passar a senha do perfil dele no Facebook
para ela. À pergunta “Você é ciumenta?”, ela respondeu:
“Extremamente! Sou um pouco descontrolada quando fico com ciúme.
Tenho que estar no controle das coisas. Tem gente que acha bizarro,
mas eu não acho nada de mais. Só namoro com senha de Facebook. Se
não faz nada de mais, por que eu não posso saber?”, declarou ela.
Ainda bem que eu e ela vivemos em mundos totalmente distintos, pois
eu não quero uma mulher dessa perto de mim nem com a porra!
Isso
só reforça aquela idéia de posse sobre o outro. Que as pessoas, em
um relacionamento afetivo-amoroso, têm de estar disponível aos
nossos humores, satisfazer nossas vontades e caprichos a todo
instante, incluindo aí nos completar e atender a todas as nossas
necessidades. Aquele velho discurso da “alma gêmea”, da “outra
metade da laranja”, tão conhecido entre nós.
Se,
para ela, isso é normal, para mim, isso é inadmissível. Nunca fiz
isso. Todas as mulheres que já se envolveram comigo tiveram total
liberdade para vestir-se como quiserem e conversar com quem bem
entenderem. Não costumo bisbilhotar o celular, a bolsa, os bolsos,
nem furtar senhas de email e redes sociais de mulher nenhuma para
saber se elas estão saindo com outros homens. Não fiz – e não
faço – isso com elas para que elas nem pensem em fazer isso
comigo. Esse papo de “quem ama sente ciúme” não cola. Eu
acredito que quem ama respeita, e o fato de uma mulher estar se
relacionando comigo não me dá o direito de exercer domínio sobre
ela – nem a ela sobre mim, diga-se de passagem.
Como
já disse, esse discurso é passado através das coisas mais banais.
E vou citar exemplos: certa vez, estava escutando uma música de Belo
em uma barraca de praia. Não sei o título da música (e nem me
interessa); só gravei a parte em que ele diz que “atrás de um
ditador, existe um grande amor”. Fiquei espantado com o que ouvi –
e não era para menos. Afinal, ele está dizendo que um homem
violento, que grita, ofende, maltrata, humilha e espanca a mulher;
controla o corpo dela; diz o que ela deve ou não deve fazer; com
quem ela deve ou não deve conversar; que tipo de roupa ela deve ou
não deve vestir e estabelece horários para ela sair e voltar (com
direito a cronometragem de tempo para punir o mínimo atraso) faz
tudo isso... porque a ama! Ele age assim porque se importa e se
preocupa com ela!! E esse discurso é introjetado na cabeça das
pessoas por intermédio de uma música romântica, que fala de amor,
com uma melodia agradável, voz gostosa, como se estivesse falando no
ouvidinho dela...
Não
sei se é nessa mesma música ou em outra que Belo inicia a canção
pedindo perdão à namorada por ter mexido na bolsa e revirado a
intimidade dela. Como sempre, com a mesma voz mansinha, falando no
ouvidinho bem baixinho para ninguém ouvir. E ainda há mulheres que
delirem e se derretam ao ouvir isso. Mais uma vez, o que me assusta
é saber que muitas dessas mulheres se deixam manipular muito
facilmente com besteirinhas do tipo que ouvem de muitos calhordas
depois de uma discussão: “meu amor, me desculpe, eu só fiz isso
porque eu te amo. Isso não vai mais acontecer, eu estava de cabeça
quente”.
Em
outro momento, escutei uma música do Exaltasamba em que Péricles
canta: “se ela não tem dono/se ela não tem dono/ela é minha/ela
é minha”. Trocando em miúdos: as mulheres são objetos passíveis
de se tornarem propriedade de um homem. As mulheres têm de ter um
dono, e as que não o tiverem estão automaticamente disponíveis. Eu
só preciso pegar, levar e me apossar delas.
O
machismo, o racismo e a homofobia são naturalizados nas mentes das
pessoas assim mesmo: através de piadinhas, músicas, de palavras
doces e palatáveis; de algo que as faça rir e delirar de emoção e
prazer. E qualquer pessoa que se voltar contra isso será a
mala-chata-insuportável da vez, que vê coisa onde não existe. Será
possível que esse cara não desliga nem um minuto sequer? Nem na
praia, de sunga, tomando sol e bebendo cerveja esse cara para um
pouco? Tudo é racismo, tudo é preconceito. Porra, é só uma
música, caralho!!!
Há também quem venha com o argumento de que "você não entendeu o que eu falei", "não foi isso que eu quis dizer"; "o que eu disse foi um equívoco, um comentário infeliz". Nós nunca entendemos nada. As pessoas nunca querem dizer o que dizem. Nunca sabemos interpretar porra de nada.
Serão
essas as críticas que eu receberei após a divulgação dessas
maltraçadas linhas no mundo virtual. Podem vir, pois eu já estou
preparado.
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