terça-feira, 8 de março de 2011

Por que eu não gosto de carnaval - Parte 2

Antes leia a parte 1

Motivos pessoais à parte, à medida que eu fui envelhecendo, lendo, estudando e aumentando o meu nível de criticidade, comecei a ver outros motivos para não ter a menor simpatia por essa festa. Vamos a eles: o carnaval de Salvador, ao contrário da propaganda feita pelas agências de turismo e demais setores comerciais que lucram absurdamente em uma semaninha de farra, já deixou de ser democrático e popular há muito tempo (se é que algum dia já o foi). Quem for endinheirado curtirá a festa com o maior conforto e segurança possíveis dentro das cordas dos blocos ou dos cada vez mais luxuosos camarotes (os mais badalados não vendem ingressos justamente para não correrem o risco – remotíssimo - de ter de aguentar um indesejável-atrevido descompreendido-que-não-sabe-o-seu-lugar lá dentro. O acesso é só para convidados). Quem não tem grana, está condenado a curtir a festa em espaços cada vez menores (pois a cada ano os camarotes avançam mais em direção à pista e o diâmetro do espaço delimitado pelas cordas aumenta), superlotados, e por aí vocês já podem prever o resultado dessa combinação: muita gente, pouco espaço, cervejas e otras cositas más na mente, música eletrizante... Os furtos, os assédios sexuais e a porradaria rolam soltos. E a Polícia, como sempre, quando vê a confusão, sai distribuindo cacetada em cima de quem encontrar pelo caminho como método de debelar e prender os briguentos no melhor estilo “bata primeiro e pergunte depois”.

A segregação sociorracial existente nessa festa aparentemente democrática é gritante e me revolta profundamente (racismo, onde?! No carnaval?!! Claro que não. Eu nunca vi nada disso. Todos brincam e se divertem harmoniosamente; o carnaval é uma festa de todos. Esse Rogério é um insuportável mesmo. Está a cada dia pior. Depois que passou a andar com esses vagabundos desocupados do Movimento Negro, pegou essa mania triste de ver racismo em tudo). Não estou dizendo que isso é invenção do carnaval, pois não é. O carnaval é um produto da sociedade em que vivemos, e se esta é desigual, racista, machista, excludente, hierarquizada, autoritária e violenta com os mais pobres, nada mais lógico que o carnaval reproduza tudo isso. O impacto só é maior porque o espaço onde essas coisas acontecem é muito pequeno, mas os camarotes, os cordeiros e demais subalternizados existem durante o ano inteiro. Basta observar como e onde são feitas as festas para os pobres e como e onde são feitas as festas para os ricos.

Poderia citar vários exemplos de racismo no carnaval, mas me deterei apenas em alguns. É revoltante ver pessoas que literalmente acampam nas ruas durante todo o período da festa para ganhar uns trocados vendendo cerveja, refrigerante, água e churrasquinho. É duro saber que aquelas pessoas precisam morar na rua durante uma semana com os seus filhos pequenos para tirar o sustento da família. Além de ter de pagar uma fortuna com o licenciamento na prefeitura para não ter as suas mercadorias apreendidas (quem pensa que o rapa acabou está muito enganado), elas ainda têm de enfrentar a marcação dos prepostos da Vara da Infância e da Juventude que querem autuar os pais e mães das crianças por terem-nas exposto a condições insalubres e a situações de perigo iminente às suas integridades físicas (que palavreado bonito!). É muito fácil perseguir as pessoas que levam os seus filhos para o local de trabalho por não ter com quem deixá-los, quando esse mesmo Estado que só aparece na hora de cobrar impostos e punir quem não cumpre os seus ditames tem a obrigação de construir creches dignas para que as trabalhadoras possam deixar as suas crianças em um local seguro enquanto estiverem trabalhando – e não as constrói.

(Quando eu falo isso, sempre aparece alguém para dizer que essas pessoas podiam deixar as crianças com uma vizinha, como se a vizinha tivesse obrigação de tomar conta dos filhos dos outros.)

Outro exemplo escandaloso da discriminação racial no carnaval é a já conhecida situação dos cordeiros. Trata-se de pessoas desempregadas ou subempregadas (o exército industrial de reserva, para usar um jargão marxista) que são cooptadas pelos blocos para segurar as cordas e separar aqueles que pagaram valores absurdos por um abadá da vil canalha preta e favelada que só vai à rua causar tumulto e roubar os outros. Tem carnaval lá em Cajazeiras, na Liberdade e no Subúrbio Ferroviário, então por que essa gente não fica lá ao invés de ir à Barra incomodar a gente de bem que só quer se divertir em paz?

Eu já sonhei várias vezes com o ano em que os cordeiros se negariam a segurar corda no carnaval, só para ver o que os donos de bloco fariam diante disso. Entretanto, é bom manter os pés no chão e não viajar na maionese. O desemprego estrutural da nossa sociedade existe justamente para reduzir essas pessoas a uma situação tão aviltante, a ponto de elas se verem obrigadas a aceitar fazer qualquer coisa em troca de uma micharia. Ninguém dá ponto sem nó.

Em conversa com amigos e vizinhos (alguns deles que já trabalharam como cordeiros), soube de casos em que um playboyzinho dentro do bloco agrediu uma pessoa que estava fora das cordas e, depois, correu para perto do trio e deixou o cordeiro lá de apara-bala. Ou seja, além de trabalhar em condições subumanas (pouca água, comida insuficiente, sem um calçado adequado [que os blocos teriam obrigação de dar, mas entraram na Justiça atrás de respaldo legal para descumprir a legislação trabalhista], ouvindo aquele som insuportavelmente alto com risco de desenvolverem problemas auditivos), essas pessoas ainda têm de servir de colete à prova de balas da playboyzada. E depois ainda há quem culpe exclusivamente os pobres pelos altos índices de violência no carnaval.

Não posso deixar de citar que, além de tudo isso que eu descrevi acima, os cordeiros e cordeiras (sim, há mulheres que também trabalham com isso) sofrem para receber os seus pagamentos depois que a festa acaba. Todo ano, a coisa se repete: filas enormes se formam nas portas das sedes dos blocos compostas por pessoas que trabalharam, mas não receberam os seus pagamentos na data previamente combinada. E quando elas se valem do direito legítimo de protestar contra esse descaso com que são tratadas, a Polícia ainda aparece lá para baixar a porrada em todo mundo sob o pretexto de “manter a ordem e conter os excessos”.

Um dos meus cunhados é segurança profissional e trabalha no carnaval há um bom tempo. Ele apareceu aqui em casa no domingo, e, como ainda estava escrevendo este texto, aproveitei para conversar com ele sobre o assunto a fim de obter algumas informações sobre o trabalho dele durante a festa. Contou ele que, já há alguns anos, integra a equipe que faz a segurança de cinco homens que vêm dos Estados Unidos anualmente para se esbaldar em Salvador. A miséria já começa na saída do aeroporto, pois os turistas têm de sair em comboio com escolta armada se não quiserem correr o risco de serem assaltados já na saída do bambuzal (passagem que fica a cerca de duzentos metros do portão de desembarque do aeroporto). Em outras palavras, ele, que é pai de cinco filhos, tem de fazer a proteção dos gringos, enfrentar os bandidos à bala se necessário e correr o risco de morrer e deixar a mulher sozinha com essa pequena trupe para que os estrangeiros não sofram um arranhão (ai do meu cunhado se acontecer alguma coisa com um desses caras aqui no Brasil). Como se não bastasse, ainda de acordo com ele, os turistas não param quieto: vão ao Campo Grande, depois de cinco minutos querem ir à Barra, depois querem voltar para o Campo Grande, em seguida ir para Ondina... Para finalizar, ele ainda disse que os gringos usam muita droga para ficarem acordados e não perderem um minuto sequer da gandaia, e para isso pedem aos seguranças para comprar cocaína e trazer prostitutas para eles. Ainda bem que o meu ramo de trabalho é outro, pois se eu não uso drogas proibidas por lei justamente para não ter de ir à boca-de-fumo comprar para mim, eu jamais iria à boca-de-fumo comprar droga para safado nenhum. Não iria, e não irei.

***

O circuito do Campo Grande-Praça Castro Alves está sendo progressivamente desprestigiado. Os blocos mais badalados já não desfilam mais lá. Alguns blocos afro e afoxés, que só desfilavam neste circuito em nome da tradição, já migraram para o circuito Barra-Ondina inclusive por questão de sobrevivência. Como as emissoras de televisão só querem ficar na Barra (só colocam alguns gatos-pingados na Avenida para cumprir tabela), e aparecer na TV é uma maneira de se mostrar e atrair a atenção do público assim como anunciantes (uma vez que os blocos afro estão sendo progressiva e muito sutilmente eliminados da festa via asfixia financeira), a migração é de certa forma até justificada. O empresariado carnavalesco baiano até já tentou acabar com o circuito Osmar (batizado assim em homenagem a Osmar Macedo, um dos inventores do trio elétrico), mas desistiu por causa do forte alarde feito pelos defensores da tradição; afinal de contas, disseram eles, foi na Avenida que tudo começou e, portanto, não é justo que esse circuito seja extinto. Isso não significa que os empresários foram demovidos da ideia, eles simplesmente só estão esperando os tradicionalistas morrerem para executar o seu plano em paz e sem risco de passarem por tiranos e impopulares.

O maior símbolo do descaso com o circuito tradicional da festa (o Barra-Ondina surgiu inicialmente como alternativo) é o encontro de trios, que acontecia na quarta-feira de Cinzas, que já não é realizado há mais ou menos cinco anos e que foi substituído pelo arrastão de Carlinhos Brown e Ivete Sangalo (ô mulherzinha sem graça!). As estrelas da axé music já não se apresentam mais lá com frequência. Os patrocinadores já não exibem mais as suas marcas no trajeto, pois a quantidade de pessoas que veriam a publicidade cai ano após ano, além do fato de as redes de televisão não se interessarem mais em fazer a cobertura do evento na Avenida.

Diante disso, fica notório que foi-se o tempo em que as pessoas traziam as suas cadeiras de casa e colocavam na rua para ver os blocos passarem. Cada vez mais, o carnaval de Salvador torna-se artigo de luxo, e os pobres só podem ir ou para trabalhar ou para tomar porrada da Polícia. Como disse Thaíde e DJ Hum, “que tempo bom, que não volta nunca mais”.

4 comentários:

  1. Hé Rogério isso é que é sintonia, também acabo de postar sobre o carnaval; sinal de que esse cenário refletor do nosso capitalismo selvagem não passa incolume, sem incomodar e sussitar reflexões nas pessoas. Concordo com suas palavras, gostaria de negá-las, mas a realidade canalha é essa mesma e negação é para os alienados e covardes. Talvez essa indignação seja a força motriz que gerará cedo ou tarde transformações a essa cena triste.

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  2. Concordo com você Rogério. É um carnaval feio em todos os aspectos inclusive de se ver

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  3. Parabéns, Rogério!
    Seus dois textos estão muito bons, não tiro uma vírgula sequer, concordo plenamente, qualquer dia desses nós precisamos nos encontrar pra eu te dar mais elementos para o não gosto do carnaval parte 3, pois fiquei num lugar privilegiado pra ver e analisar tudo o que você falou e um pouco mais. Grande abraço.
    Yara Santiago

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  4. Não posso mentir, gosto e frequento o carnaval, mas concordo com o seu excelente texto. Afinal de contas, me rendi a uma das medidas de segurança do circuito e saio num bloco para garanti a minha integridade fisica.
    Parabéns e grande abraço.
    Cassi Ladi

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