domingo, 29 de março de 2009

"Pobre só gosta de porcaria".

Discuti esse tema a semana inteira com os meus estudantes em sala de aula. Por conta disso, resolvi coletivizar aqui algumas considerações acerca do assunto (não sei se alguém vai ler, mas isso é outra história. Não depende de mim).

Fala-se muito que "pobre só gosta de música ruim", que "pobre só escuta merda", que "não gosta do que é bom", e outras tantas besteiras do tipo. Já vi e ouvi muita gente dizer isso. Tive vários arranca-rabos com colegas de faculdade, professores, familiares e amigos por causa desse assunto. Todos eles, em maior ou menor grau, insistiram na ideia de que só os ricos gostam das "coisas boas", da "cultura" (como se os mais pobres não tivessem cultura, e que os ricos fossem uns poços de inteligência e erudição. Eu sempre bati - e ainda bato - de frente com todas as pessoas que dizem isso, pois discordo profundamente.

Discordo por algumas razões que tentarei expor nessas mal-traçadas linhas a partir de agora: os mais pobres não gostam da "alta cultura" por acaso? Os moradores das favelas e dos bairros de periferia não gostam de música clássica, jazz e blues, não vão ao teatro, não escutam Maria Rita, João Bosco, Chico Buarque e tantos outros do gênero simplesmente porque não querem ou porque os organizadores desses espetáculos usam de estratégias várias para impedir que os mais pobres tenham acesso a esse tipo de produção cultural? Não digam que isso é mania de perseguição minha, pois não é.

A minha mãe sempre curtiu - e acredito que ainda curte - muito as músicas de Julio Iglesias. Tinha vários LPs (que já foram jogados na lata do lixo há muito tempo). Certa vez (nem lembro mais quando), Iglesias veio a Salvador fazer uma apresentação no Clube Bahiano de Tênis (que não existe mais), e ao saber disso minha mãe quase enlouqueceu. Queria porque queria ir a essa apresentação de qualquer maneira. Ligou para o clube a fim de saber qual era o preço do ingresso, e ao desligar o telefone a decepção ficou estampada na cara dela. Foi informada por uma funcionária que não havia ingressos à venda, mas reserva de mesas com quatro cadeiras a quatrocentos reais (uma fortuna para ela). Como minha mãe não dispunha dessa quantia no momento, foi obrigada a desistir de realizar um dos seus sonhos. Sabe-se lá quando Iglesias voltará a Salvador - e se ela terá dinheiro para pagar o ingresso, é claro.

Outra vez, Chico Buarque veio a Salvador fazer uma apresentação no Teatro Castro Alves (um dos mais famosos da cidade. Como minha mãe gosta muito das músicas de Chico, também ficou louca de vontade de ir ao teatro vê-lo. Quando soube que o ingresso mais barato custava R$ 140, para ficar sentada na fileira Z10000000.... (na fileira G já não é possível enxergar mais porra nenhuma), ela mais uma vez teve de resignar-se.

Mais recentemente, a minha namorada estava reclamando comigo sobre uma apresentação de Maria Rita que aconteceu na Marina da Penha (local caríssimo e por isso frequentado somente pelos endinheirados baianos e por turistas igualmente endinheirados). Ela reclamava do alto preço do ingresso, do horário da apresentação, da dificuldade de transporte para chegar ao local (além de não haver ponto de ônibus próximo ao local, nenhuma linha de ônibus que sai do bairro onde moramos passa lá), da falta de dinheiro para pagar táxi... Após escutar tudo, eu lhe fiz a seguinte pergunta: "minha cara, você acha que o empresário que trouxe Maria Rita para fazer apresentação aqui em Salvador pensou em você? Pensou nos pobres moradores de periferia que gostam do trabalho dela? Você acha que os organizadores do espetáculo querem a nossa presença lá?".

É justamente isso. A nossa presença é rechaçada nos lugares e eventos "eruditos". Barreiras e mais barreiras são criadas para que pessoas como eu, minha mãe e minha namorada não apareçam nesses locais - como espectadores, é claro. Foi anunciado nos jornais que o Cirque du Soleil fará uma apresentação aqui em Salvador em agosto. O ingresso mais barato custará quase R$ 300 (para quem quiser sentar na fileira Z100000000...) e o mais caro (para quem quiser sentar na fileira A1) R$600.

Pensa que acabou? Nada disso. Além desses preços estratosféricos para a realidade da maioria dos moradores de Salvador, os ingressos só serão vendidos a clientes Bradesco Prime e American Express. Agora respondam-me: qual é o pobre brasileiro que tem conta Bradesco Prime e cartão de crédito da American Express?? Mesmo que eu me acabe para conseguir dinheiro para comprar um ingresso, eu não poderei comprá-lo porque eu não sou correntista de um banco e muito menos cliente do outro.

É por isso que eu fico furioso da vida toda vez que alguém fala mal do pagodão e do arrocha (ritmos musicais bastante difundidos entre os moradores de periferia de Salvador) na minha frente. Voo - e voarei - em cima de qualquer um que disser que isso é "baixaria", "zoada", que essas músicas "não tem letra", "não dizem nada", e consequentemente que "pobre só gosta dessas porcarias mesmo". Ora, bolas!! Os pobres também têm o direito de se divertir. E como não possuem condições de gostar "do que é bom", criam os seus próprios divertimentos. Os pobrs curtem o pagodão e o arrocha porque são produções culturais que eles podem consumir. Os CDs podem ser comprados em qualquer banca de camelô da cidade (eu sou totalmente a favor dos camelôs), e as apresentações são bem mais baratas. O preço do ingresso custa em média R$15, casadinha R$20. Junta-se dez de um, dez de outro, e vamos lá.

Se querem que os pobres gostem de música clássica, coloquem a Orquestra Sinfônica da Bahia para fazer apresentação nos bairros pobres da cidade; se querem que a "vil-canalha" goste de balé, coloquem a companhia de balé de Rosana Abubakir para fazer apresentação no subúrbio ferroviário; se querem que os pobres gostem de Chico Buarque, Paulinho da Viola e afins, coloquem os CDs a um preço mais baixo que com certeza essas pessoas comprarão. Fica fácil criar toda sorte de meios para impedir que os pobres gostem desse tipo de cultura, e depois dizer que o brasileiro "não dá valor aos bons artistas nacionais". Como é possível dar valor a uma coisa totalmente desconhecida?

Só à guisa de ilustração, uma menina moradora de Paripe (bairro do subúrbio ferroviário e totalmente esquecido pelos poderes públicos) começou a treinar balé numa sala sem o piso adequado, sem espelho, com sapatilhas emprestadas, com barras improvisadas, e apesar dessas e outras dificuldades conseguiu uma vaga no Balé Bolshoi de Santa Catarina. Se ela mandar bem lá em SC, será selecionada para o Balé Bolshoi da Rússia. Acredito que muitas outras meninas do bairro também poderiam obter o mesmo sucesso se tivessem condições adequadas para treinar.
Esse é o mesmo argumento usado por aqueles que dizem que "brasileiro não gosta de ler". Será mesmo? Livros custam muito caro nesse país!!!! É praticamente impossível encontrar um livro que custe menos que trinta reais. Ao ouvir essa constatação, esses canalhas dizem que isso não é desculpa porque "existem bibliotecas públicas acessíveis a quem não tem condições de comprar livros". Eu pergunto: qual é o tempo que uma pessoa que sai de casa às 5h da manhã para trabalhar e retorna às 22h tem para ficar dentro de uma biblioteca pública lendo alguma coisa? Se os livros fossem mais baratos, essas pessoas poderiam comprá-los e lê-los em casa nos poucos momentos de folga.

É o que tenho a dizer.


Até mais ver.

4 comentários:

  1. mto legal o texto,sucesso!!!

    visite tb o blog furdunconosemaforo.blogspot.com

    ResponderExcluir
  2. Discordo! Eu já tentei introduzir músicas diferentes para pessoas de baixo nível sócio econômico e recusaram ouvir meus CDs porque disseram que as músicas dão sono!

    ResponderExcluir
  3. Fábio,

    Essas pessoas não quiseram ouvir as músicas que você gosta porque dão sono da mesma forma que você possivelmente se recusaria a ouvir as músicas que elas gostam por razões que eu prefiro não mencionar aqui. Se você acha que tem o direito de reagir mal a uma música que você nunca ouviu, a uma comida que você nunca comeu ou a um tipo de roupa que você nunca usou, as pessoas mais pobres também têm esse direito - e elas não são piores do que você por causa disso.

    Além do mais, como você pode querer que as pessoas de baixo nível socioeconômico (odeio essa expressão) gostem de uma coisa que elas não estão acostumadas a ouvir - ou nunca ouviram? Você mudaria os seus hábitos construídos durante toda uma vida porque uma pessoa qualquer apresentou a você coisas totalmente diferentes, coisas que você nunca viu e nem foi acostumado a usar? Era exatamente assim que os colonizadores europeus pensavam e tratavam as populações julgadas inferiores e atrasadas.

    Se você resistirá bravamente a uma pessoa que quiser mudar os seus gostos de uma hora para outra, por que você acha que as pessoas a quem você apresentou os seus CDs deveriam agir de modo diferente? Quem é você para dizer o que os outros devem gostar? Você aprendeu a gostar dos tipos de música que gosta após tê-las ouvido uma única vez? Ou você precisou de um tempo para aprender a curtir as músicas que você gosta? Você não acha que está sendo um pouco ditatorial com as pessoas mais pobres?

    Fiz muitas perguntas. Vou parar por aqui e esperar pelas suas respostas

    ResponderExcluir
  4. Noto que existe uma confusão entre nível socioeconômico e o que eu chamo de educação familiar (atenção, não confundir com ensino escolar, acadêmico etc).
    Sou suburbana, jovem, numa capital num estado nordestino, pobre, e gosto de Elis Regina, Tom Jobim, Luiz Gonzaga, Gonzaguinha, entre tantos outros, me formei em licenciatura em artes, trabalho em museu, visito exposições, shows, peças de teatro - que não precisa ser renomado para ser bom. Faço tai chi chuan a um precinho acessível, e juntei dinheiro por anos para comprar minha tão sonhada radiola para ouvir meus vinis que comprei a um real cada.

    Assim como eu, muitas pessoas das periferias, dos suburbios, agrupamentos étnicos como etnias nativas e quilombolas são cultos, estudiosos e fazedores de cultura, seja erudita ou popular.

    Ao mesmo tempo, vá a uma calourada dos cursos de Medicina, de direito, engenharia, de faculdades públicas - onde os mais ricos tem mais chances de ingressar- e escute as músicas que tocam. Atente para os carrões na beira-mar, nos salões de festa de ricos e nas celebridades que influenciam a juventude na televisão e na internet: é funk, proibidao, sertanejo, músicas sobre sexo, dominação, drogas, crimes e desrespeito. Danças sexuais, roupas vulgares e comportamento pior ainda.Swm falar na imbecilizacao.

    Por outro lado, as Secretarias de Cultura estaduais e municipais, as ações culturais e equipamentos das instituições bancárias, tentam fazer ações gratuitas para a população, sabe quem vai?

    ResponderExcluir