quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O capitalismo e as suas crueldades cotidianas

Presenciei uma situação inusitada e revoltante hoje à tarde (dia 08/12). Um dos exemplos mais impactantes que tive da crueldade da exploração do trabalho. Estava dentro de um ônibus coletivo quando de repente entrou um vendedor de doces, cego. Depois de um certo tempo conversando com o motorista, ele começou a andar e anunciar os seus produtos. Uma coisa chamou bastante a minha atenção: ele carregava preso à parte da frente da camisa um crachá com os dizeres: “Operador de Vendas Externas/Pertence à RCR Atacado/PROIBIDO GORJETA”. Após ter anunciado os produtos e dizer o preço de cada um deles, ele fez questão de destacar que não aceitava gorjeta e pediu para que as pessoas não dessem dinheiro a ele se não quisessem comprar os doces.

Fiquei muito intrigado com aquilo. Inicialmente, pensei que ele quisesse se valorizar como trabalhador, pois estava vendendo os doces dele e, portanto, queria ser visto como uma pessoa capaz pelos outros passageiros. Em resumo, que ninguém ficasse com peninha do ceguinho e desse uma esmolinha para ajudá-lo. Até aí, tudo bem.

Entretanto, me senti fustigado com a mensagem no crachá dele e resolvi tirar a dúvida. Quando estava perto do ponto onde eu teria de descer, eu me levantei um pouco antes para dar tempo de puxar conversa com ele. Perguntei:

- Por que você disse que não pode aceitar gorjeta?

Ao que ele respondeu:

- Não posso porque a empresa me proíbe. Se o fiscal me ver aceitando dinheiro dos outros sem vender os produtos, eu tomarei reclamação do meu chefe e poderei até ser demitido por conta disso. Aí, é prejuízo pra mim, cara. Emprego tá difícil.

Sei muito bem que o mundo capitalista é cruel, que empresário não tem amor a ninguém exceto a família dele (e olhe lá) e que só quer saber de maximizar os lucros. Não sou nenhum bobinho. Mas eu não consigo deixar de me espantar com certas coisas que vejo por aí. Porra, pegar um homem cego, pobre, colocá-lo para vender doces nas ruas e ônibus de Salvador, e, como se não bastasse, ainda colocar um fiscal para vigiá-lo para que ele não aceite gorjeta de ninguém é demais para mim. É possível que de fato não houvesse fiscal nenhum escalado para monitorá-lo, mas o trabalhador não tinha como saber disso por razões óbvias. É por isso que eu falo sempre para os meus familiares, amigos e estudantes que nós não devemos ter um pingo de pena dos ricos, pois estes não têm misericórdia de ninguém.

Quando eu digo isso, invariavelmente surgem olhos arregalados e rostos espantados na minha frente por achar que eu sou um assassino em potencial (como os psicólogos, psicanalistas e psiquiatras dizem que qualquer pessoa é capaz de matar, os meus estudantes não estão necessariamente errados. Mas também não estão certos, pois eu nunca matei ninguém. Ainda). Entretanto, sejam sinceros: o que você acha que deve ser feito com um canalha que faz um absurdo desses com um homem cego e pobre? Não estou dizendo que os cegos não podem trabalhar. Mas desse jeito? Nessas condições? Além do mais, quem me garante que ele recebe a parte dele corretamente? Ele trabalha para uma empresa, mas com carteira assinada? Os encargos sociais estão sendo recolhidos?

Se fazer isso com um trabalhador que goza de todas as suas funções vitais já é um absurdo, com um portador de necessidades especiais chega a ser um crime hediondo. É inadmissível que as pessoas vejam isso e achem normal, por mais que a exploração seja vista como uma coisa normal por nós. Reconheço que mudar o olhar das pessoas é muito difícil (eu já tenho dificuldade para mudar o meu com relação a algumas coisas, que dirás mudar o dos outros), mas é necessário.

Eu não quero ter que achar normal ver um mano meu coberto com jornal, como bem disseram os Racionais MCs, mas há pessoas que são capazes de passar por uma pessoa jogada na rua, pisar em cima e ainda reclamar com ela. Infelizmente, somos educados para pensar que pimenta nos olhos dos outros é refresco e que nós estamos livres de ser reduzidos a essa condição. Enquanto não mudarmos isso, nada mudará.

Um comentário:

  1. Concordo com o post. Cara, já fico espantado com outras coisa, mas dessa não sabia. Sempre o capitalismo dá um jeito de piorar as coisas pra parte mas fraca. Em relação a ônibus, já reparou que alguns perderam algumas cadeiras para dar lugar a mais pessoas de pé? E no fundo instalaram apoios para as mãos, desse jeito o ônibus negreiro leva mais passageiros.

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