quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O sapatinho da Cinderela, o alisamento de cabelo e a opressão racista

Esse texto é fruto de um bate-papo virtual com Gabriel Swahili, um conhecido, ex-colega de trabalho e parceiro de caminhada, no dia 13/12/2010, no MSN.

Tudo começou quando a psicanalista e sexóloga Regina Navarro Lins colocou no Twitter uma frase sobre o mito da Cinderela e a mensagem subjacente que esta historinha passa para as mulheres desde a infância. Conta o mito que o príncipe sai com um sapatinho nas mãos em busca da mulher cujo pé coubesse dentro dele (do sapato, é claro), e a mulher que conseguisse isso seria tomada como princesa. Por conta disso, muitas mulheres com pés maiores começaram a mutilá-los de modo que coubessem no bendito sapato para poderem ser escolhidas. Navarro Lins emendou que esse conto passa para as meninas a ideia de que as mulheres têm de aprender desde cedo a adequar os seus corpos às exigências masculinas, seja lá qual for o preço que deva ser pago por isso. Lembro que certa vez li que, há - e durante - muitos séculos, as mulheres chinesas que tinham pés considerados grandes fraturavam-nos e colocavam-nos em sapatos para diminuir o tamanho deles, pois os homens só se sentiam atraídos e escolhiam como esposas mulheres com pés pequenos. Ou seja, o mito não é tão mito quanto pensamos que seja.

Eu concordei com ela, mas o meu conhecido Swahili fez algumas ressalvas. Disse ele que tanto eu como Navarro Lins estávamos vendo as mulheres como indefesas por excelência, pois, na história, o príncipe procura o pé, não maneja a faca (palavras dele). Fiquei bastante assustado após ter lido isso, e escrevi a seguinte mensagem-resposta: “Gabriel, foi você mesmo que escreveu isso? Eu não acredito!” Na data citada acima, ele entrou no MSN e, ao ver que eu estava online, puxou conversa e tivemos um saudável e respeitoso debate sobre o assunto.

Comecei dizendo que acho a interpretação dele equivocada, pois o príncipe não maneja a faca, mas também não casa com uma mulher que não tenha feito os seus sacrifícios para que o pé caiba dentro do tal sapato (inclusive mutilá-lo). E, numa sociedade na qual a única possibilidade de sobrevivência minimamente digna para as mulheres estava no casamento (até porque elas só eram preparadas para isso), aquela que se recusasse a fazer sacrifícios para se enquadrar nas exigências masculinas estaria perdida, mal-paga e desamparada. Trocando em miúdos, as mulheres se viam diante de um grande dilema: ou se adaptavam aos enquadramentos estéticos impostos pelos homens, ou ficariam desamparadas sem ter onde cair vivas (esse papo de “fulana não tem onde cair morta” é mentira. Ela pode não ter onde cair viva, pois, morta, ela cairá em qualquer lugar).

Aproveitei o ensejo para fazer uma comparação com algo ainda bem presente na sociedade brasileira: o alisamento de cabelo. Acho que esta comparação é bastante válida (corrijam-me se eu estiver errado). Às vezes, encontro algumas pessoas que descem a lenha em cima das mulheres que foram jovens nas décadas de 1970 e 1980 por elas alisarem os cabelos com a justificativa de que elas estavam “negando a raça”, “não queriam ser negras”, ou eram “mulheres descaradas e desavergonhadas”, uma vez que o certo seria enfrentar a sociedade. Ora bolas, falar é fácil. Darei um exemplo bem próximo de mim: a minha mãe. Em 1981, ela era uma mulher de vinte e seis anos de idade e já tinha três filhos. Sozinha, teve de trabalhar em dois empregos (às vezes três em alguns momentos) para sustentar essa pequena tropa. Vocês acham que ela deveria perder tempo entrando em conflito com os patrões? Se ela já sabia que seria discriminada sumariamente pelos empresários se batesse na porta deles com os seus cabelos crespos, vocês acham que ela seria idiota a ponto de se negar a alisá-los? Enquanto ela estivesse lá lutando contra a opressão estética racista e se afirmando como negra, quem colocaria comida na minha boca e na boca dos meus irmãos? Povo, o papo é o seguinte: em uma situação desigual de poder, fala-se a língua do mais forte. Se ter os cabelos esvoaçantes ao vento era condição sine qua non para conseguir um emprego, e ela tinha três bocas para dar comida, tudo bem. Que assim seja: alisa essa porra!

(Antes que alguém grite, deixe-me dizer que isso não acabou. Pelo contrário. Há patrões que, atualmente, ainda se recusam a contratar funcionárias que não estejam com os cabelos alisados ou as ameaçam de demissão caso elas não alisem as madeixas.)

Eu não tenho nada contra as mulheres que alisam os cabelos. Quem me conhece sabe que eu não canso de dizer que as negonas são donas dos seus corpos, e, portanto, elas têm o direito de fazer o que quiserem com eles. Se elas gostam de alisar os cabelos, se se sentem bem assim, tudo bem. Eu só luto para que a decisão de dar chapinha, escova progressiva, passar guanidina ou equivalentes seja fruto de uma escolha, não de uma imposição. Ou seja, batalho para que as mulheres negras não sejam obrigadas a alisar os cabelos para serem aceitas pela família e pelos amigos; para conseguirem emprego com mais facilidade, não serem assediadas moralmente pelos colegas de trabalho e patrões; para serem vistas como mulheres mais desejáveis pelos homens (afinal de contas, as negonas também têm o direito – e a necessidade – de beijar na boca e gozar gostoso). Assim como o príncipe na história da Cinderela, há homens que não obrigam as mulheres a alisar os cabelos, mas também não se relacionam com mulheres que não fazem isso.

Em outro momento, Swahili disse que não concorda muito com essa explicação porque, segundo ele, o papel de sujeito dos subalternizados fica anulado. Eu disse que não, e sustentei que reconheço muito bem que os oprimidos são sujeitos, mas em uma relação assimétrica de poder, como já disse, cantar a música que os mandões gostam de ouvir é uma questão de sobrevivência; ninguém (pelo menos até onde eu sei) seria fodão de discutir com uma arma apontada para a cabeça. O historiador João José Reis é muito enfático ao dizer que os escravizados não foram vítimas passivas da escravidão. Eles e elas resistiram o quanto - e da forma que - puderam ao escravismo: através do “corpo mole”, manipulando psicologicamente os seus senhores e prepostos destes, de pequenas e grandes sabotagens (colocar limão no caldo de cana, tacar fogo nas plantações, quebrar os dentes do moinho, dentre outras). Houve rebeliões, revoltas, quebra-paus, senhores matando escravizados, escravizados matando senhores, mas nem sempre era possível – e recomendável – para os escravizados bater de frente contra o sistema; apesar de serem sujeitos, os escravizados tinham um poder de ação bastante limitado. Eles sabiam que tinham de resistir com cuidado e, em alguns momentos, era fundamental fazer (ou pelo menos fingir que estavam fazendo) o jogo dos seus senhores, pois qualquer passo em falso poderia significar o fim da existência.

Claro que houve escravizados que passaram para o lado dos senhores porque quiseram e tinham plena consciência do que estavam fazendo (os capitães-do-mato estão aí para não me deixarem mentir). Não estou negando isso (antes que alguém brade). Era fundamental para o sistema escravista contar com aliados dentro do grupo discriminado, pois, se não fosse isso, a escravidão não teria durado tanto tempo. Todavia, escravizados assim foram exceções – que não devem ser confundidas com a regra.

Em suma, as mulheres são sujeitas. Cabe a elas (e somente a elas) a decisão soberana de fazer o que bem entenderem com os próprios corpos (em qualquer caso). Mas como disse a minha amiga Carol Campbell, é necessário compreender que há mulheres que não aprenderam a se valorizar, a aceitar o seu corpo como ele é, a reconhecer que também são belas, que ouviram todos os absurdos possíveis e imagináveis quando a mãe ou as tias estavam penteando os cabelos delas (uma amiga minha disse que a mãe sempre penteava os cabelos dela repetindo o seguinte mantra: “está vendo, minha filha? Não case com homem preto, pois, se você fizer isso, os cabelos dos seus filhos serão assim, duros iguais aos seus"), e nesses casos é necessário fazer um trabalho longo e delicado de mudança de óptica. É preciso ajudá-las a trocar as lentes com que veem o mundo e a forma como foram inseridas nele, e isso não é algo que acontece em pouco tempo. Ninguém se desvencilha dos próprios preconceitos tão rápida e facilmente quanto aparenta.

(Aproveito a ocasião para contar um caso estarrecedor que ouvi num curso que tomei no Instituto Cultural Steve Biko: uma mulher, negra, tinha uma raiva tremenda dos próprios cabelos. Havia feito de tudo para deixá-los lisos, do jeito que sempre viu nas propagandas de shampoo na televisão. Tentou de tudo: deu chapinha, fez escova progressiva, passou ferro, deu alisante, mas nada. Imagino eu que ela seria capaz de passar até bosta de cavalo se por acaso algum insano dissesse a ela que isso deixaria os cabelos lisos, sedosos e esvoaçantes. Como nada disso deu certo, ela tomou uma medida drástica: colocou os cabelos na mesa, cobriu com uma toalha e passou ferro de roupa nele. Dado que os resultados continuaram insatisfatórios, ela, num acesso de fúria, ateou fogo na cabeça para se livrar dos cabelos “duros”. Foi levada para o hospital com queimaduras de segundo e terceiro graus no couro cabeludo, e ficou um bom tempo internada.

Depois que recebeu alta, a equipe de coordenação e alguns psicólogos ligados à instituição tomaram conhecimento do caso e, após conhecê-la, começaram uma longa sessão de acompanhamento para tirar da cabeça dela essa ideia racista de que cabelos crespos são feios, duros, de pixaim, dentre outros termos pejorativos. Hoje, ela está melhor, aceita o seu corpo como ele é e se tornou mais uma ativista na luta contra o racismo. Não sei quem ela é, antes que alguém pergunte se eu a conheço.)

Para finalizar, ainda de acordo com os comentários da minha amiga Carol Campbell, é necessário também mudar a visão da sociedade como um todo, pois enquanto as mulheres tiverem de se mutilar para serem aceitas, e as que se recusarem a fazer isso forem vistas como feias, incapazes e sistematicamente preteridas, seja como trabalhadoras ou como namoradas/esposas, nada mudará. Elas continuarão tendo que cortar os seus pés ou alisar os cabelos para conseguirem sobreviver.

Não é isso que eu quero. E vocês?

6 comentários:

  1. O preconceito tá inserido e não se muda de uma hora pra outra. O objetivo que você tem é o nosso e de muitos. O problema é que quem ouviu a vida toda - sofreu na infância e adolescência - que ser negro é coisa ruim, cabelo duro é sinônimo de feiura vai querer mudar a aparência de um jeito ou de outro, não importa como. Quando as mulheres passarem a perceber e usarem o método do "não me vejo, não compro", creio que essa história se modifique.

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  2. Mas para que esse método seja usado, é necessário que as pessoas aprendam a usá-lo, isto é, reconheçam que são invisibilizadas pela sociedade e consequentemente pelo mundo do consumo (não são todas que enxergam essas coisas). Como já disse no texto, é fundamental que essas pessoas troquem as lentes com que veem o mundo - e isso não é trabalho rápido e fácil.

    As pessoas querem mudar a sua aparência de qualquer jeito porque ouviram durante toda a vida que ser negro é sinônimo de tudo de ruim que há na face da terra: ladrão, prisioneiro, sacizeiro, mendigo, catador de material reciclável, desempregada, subempregado, puta, burra, analfabeta... Se ser negro significa ser tudo isso, nada mais compreensível que eu faça o que for possível para me afastar desse grupo.

    Só depois disso nós estaremos aptos a executar o boicote. E no dia em que nós aprendermos a fazer isso, muita coisa começará a mudar sensivelmente aqui no Brasil.

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  3. Mas o Brasil é influenciado de vários os lados. Tanta propaganda batendo na porta de casa, televisão e vários meios. São poucos os pais e professores que tentam explicar melhor e levantar a auto estima do cidadão desde criança.
    É uma guerra séria e dura, mas creio eu que com pequenos passos iniciais esse quadro pode mudar. Creio eu.

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  4. Eu também creio nisso, cara. O que nós podemos fazer é pouco, mas se essa é a contribuição que eu posso dar para mudar isso, vamos lá.

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  5. As coisas são muito mais difíceis... Infelizmente.
    Tem gente que continua acreditando que optou por alisar o cabelo pq é mais bonito. Que a expressão "um pé na cozinha" não é preconceito racial. Que retificar os pequenos atos racistas língüíticos, de comportamente e etc é mania de perseguição ou preconceito de inferioridade...
    E o pior é que são pessoas negras!!!
    Mas não podemos desanimar...

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  6. Pois é, o preconceito é um dos piores cânceres da nossa sociedade, porque distorce o olhar, perverte a realidade e gera sempre uma relação de superior/inferior, que é completamente absurda e não só pode como têm efeitos devastadores.
    Na atualidade, o racismo ganhou formas de expressão diferentes, mas se faz sentir claramente nas entrelinhas, ou nas linhas dos discursos proferidos durante conversas e bate papos casuais. Porque será que em certos ambientes não é crível que eu gosto do meu cabelo crespo e encaracolado da forma que ele é, que eu gosto do volume que ele tem e que pra mim ele é bonito assim. Porque alguns tolos esperam que em ocasiões especiais eu os escove, ou então que um dia os alise. Não, não, melhor nem continuar, deixa a poesia falar.


    Há cabelos crespos de idéias desembaraçadas
    Há cabelos lisos com mentes cheias de nós
    Mas eu prefiro mesmo o bom negro, o bom branco e o bom mestiço
    que sabem que a raça humana é uma só e entendem a magia das cores,
    belezas que sendo únicas, são incomparáveis.
    Liberdade para as mentes desatarem os nós seculares e deixarem aflorar a verdade que a ignorância manteve refém.
    B.N

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