domingo, 15 de agosto de 2010

O que estamos fazendo com as nossas crianças?

Vinha pensando em escrever sobre outra coisa há dois dias, mas mudei de idéia em virtude de uma conversa que tive hoje com uma vizinha. Ela contou uma história que me deixou profundamente estarrecido, revoltado e preocupado. Disse ela que a sua filha mais velha, de nove anos de idade, tem uma extrema dificuldade de ler. A menina, ainda de acordo com a mãe, faz cálculos matemáticos com uma precisão e rapidez invejáveis, mas a coisa muda completamente de figura na hora de fazer uma leitura. Ela até consegue reconhecer as letras, mas trava na hora de juntá-las e formar as palavras. Concordei com a mãe da menina quando ela disse que isso é um absurdo, pois é mesmo. Mas não foi isso que me assustou.

Fiquei apavorado com as reações que ela disse que tem diante do fraco desempenho escolar da filha. Como forma de “incentivar” a criança a estudar mais, ela acaba na verdade fazendo tudo o que não se deve fazer a uma criança com dificuldades de aprendizagem: grita, chama a filha de burra, preguiçosa, relapsa; diz que ela não está fazendo valer o investimento financeiro que está sendo feito na educação dela (a menina estuda em escola particular), incita a competição entre ela e o irmão mais jovem, de seis anos, ao dizer que ele já sabe ler enquanto ela está “atrasada”... Como se não bastasse, no final do bate-papo ela soltou mais essa: como a filha tem os cabelos alourados, ela, num dos vários acessos de fúria, justificou o fraco desempenho da menina à cor dos cabelos ao dizer que “para ser burra desse jeito, só podia ser loira mesmo!”

Gente!! Vocês não imaginam a quantidade de calafrios que eu senti ao ouvir isso. Muitas palavras já me impactaram por aí, mas não me lembro de quando fiquei tão assustado pela última vez antes de hoje à tarde. A minha sensação de pânico aumentou exponencialmente depois que ela disse que a filha já falou várias vezes que tem vontade de tornar-se médica pediatra. Agora, imaginem: nesse ambiente de pobreza e miséria em que vivemos, em que os maiores ídolos das crianças são os bandidos, onde infelizmente é possível encontrar crianças até mais jovens do que ela dizendo expressamente que o maior sonho das suas vidas é tornar-se “patrões do morro”; onde encontrar educação de qualidade é tarefa impossível, chega a ser surpreendente (e animador) saber que uma criança sonha em estudar medicina – ao mesmo tempo, é revoltante saber que a própria mãe dela, ao invés de apoiá-la, está castrando-a intelectualmente!

Vi-me na obrigação de fazer algo. A princípio, pedi encarecidamente para ela não fazer mais isso com a menina (não ofendê-la mais e não mais incitar a competição entre ela e o irmão), pois os danos psicológicos decorrentes disso podem ser irreversíveis. Como forma de convencê-la do absurdo que está fazendo, eu disse que isso não é burrice coisa nenhuma; que cada pessoa tem um ritmo diferente de aprendizado, e que provavelmente a escola onde ela estuda não está prestando atenção a isso. O que é bem possível, pois um dos meus sobrinhos enfrentou o mesmo problema: passou um ano e meio numa escola e saiu de lá sem ser capaz de ler uma palavra. Após a minha irmã tê-lo transferido para outra escola, ele, num intervalo de três meses, já havia aprendido a ler com relativa desenvoltura.

Para terminar, recomendei que ela assistisse a um filme chamado O Contador de Histórias. Este filme trata da vida de Roberto Carlos Ramos, um pedagogo mineiro de 44 anos, que, aos seis, foi entregue pela mãe à FEBEM por acreditar que essa instituição ofereceria o melhor futuro possível para uma criança preta, pobre e favelada de Belo Horizonte (crença essa que foi incentivada pela propaganda feita pela ditadura civil-militar brasileira). Lá, ao invés de estudar e aprender uma profissão, ele aprendeu a roubar, a fugir da instituição (132 vezes), a usar drogas e falar palavrão. Tido por irrecuperável, foi adotado pela pedagoga francesa Margherit Duvas e levado por ela para a França, onde morou de 1979 a 1984. Ao retornar ao Brasil, cursou Pedagogia na Universidade Federal de Minas Gerais, retornou à FEBEM como estagiário, adotou um interno da instituição (e mais treze crianças ao longo da vida) e se tornou um dos maiores contadores de histórias do mundo.

Essa foi a única forma que encontrei de mostrar à minha vizinha que não existe ninguém burro e irrecuperável. Só espero que ela assista ao filme e entenda a mensagem. Mas eu acredito que ela entenderá, pois eu não gosto de subestimar a inteligência de ninguém.

Se alguém tiver alguma sugestão de como agir para impedir que a castração intelectual dessa criança seja concluída, deixem-nas nos comentários. Pedagogos, professores, pais, mães, pessoas de bom coração, entrem em ação. A causa é nobre e o momento é urgente.

Ainda não dei o DVD do filme a ela, mas já acionei a minha namorada e pedi para ela providenciar a cópia com a maior brevidade possível. Temos de agir rápido.

5 comentários:

  1. Professor Rogério, essa é uma problemática que discutimos diariamente,a fim de avaliar nossa própria postura em sala com os alunos, porque sabemos que cada atitude nossa refletirá no educando. Seja positiva ou negativa, como o caso que aborda na sua matéria. Mas o que é mais doloroso é saber que essa questão está inserido no berço familiar, o que é muito comum, apesar de inadmissível. Neste caso, o trabalho tem de ser feito objetivando a mãe da criança, porque o problema está nela. Não precisa ser um educador pra entender as reais necessidades de uma criança. Basta um pouco de bom senso para perceber que cada criança passa por um processo cognitivo diferente, requer de um tempo específico para que possa adquirir habilidades diferenciadas no seu processo de aprendizagem. E se há porfissionais que não tem essa sensibilidade, quem dirás uma mãe que não detém de conhecimentos específicos para tal questão!
    Mas, vale a dica do filme " O contador de histórias". Espero que ela entenda a mensagem.


    Até mais.

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  2. Rogério,
    É importantissímo que o senhor continue acompanhando este caso de perto, fazendo com que cada vez mais essa mãe tome consciência e dimensão do ato de violência que ela vem praticando e se vc também tiver acesso a essa criança, lhe dê palavras de incentivo.
    Também é de fundamental importância leva a menina no psicólogo para fazer uma investigação, primeiro, se ela possui dislexia ou então um outro ritmo de aprendizagem quando a área não é de exatas e, avaliar qual impactojá existe na parte emocional desta criança e como isso pode ser revertido p/ que ela não cresça com complexos nem com raiva dessa mãe que também precisa ser trabalhada.

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  3. Bárbara,

    A criança em questão e a mãe dela não moram mais perto de mim, portanto eu não tenho como acompanhar o caso tão de perto assim. O que eu podia fazer para mudar esse caso, eu já fiz: pedi à mãe para não fazer mais isso com a filha, conversei com ela sobre os possíveis danos que a menina pode desenvolver em virtude dessas ações, entreguei uma cópia d'O Contador de Histórias e pedi para ela assistir ao filme junto com a criança. Mais do que isso, fica difícil.

    Seria ótimo se eu pudesse fazer mais, mas eu não posso.

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  4. É uma agressão extremamente cruel. Minha vizinha e sua irmã chamam seus filhos de burros, vagabundos e porcos quando estes fazem alguma travessura, por exemplo. O pior, é que eles têm apenas 7 anos e hoje, são crianças que gritam o tempo todo, chingam uns aos outros desses mesmos nomes(até piores) e são extremamente mimados.

    Acho que você fez o que foi possível no momento.Ter colocado seu ponto de vista perante a situação(já que ela teve a liberdade de expor ela a você, você tem liberdade de expor sua visão também) de forma que a fizesse pensar sobre isso.

    Tomara que ela tenha pensado, pelo menos um pouco. Pelo bem da garota, pois ela sofrerá as piores consequências disso tudo.

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  5. Isto tem haver com umas idéias que estão sendo gestadas em minha cabeça. Precisamos articular um projeto na educação básica das escolas públicas que envolva assistencia social, acompanhamento psicológico e participação de pai e mãe de cada aluno.E olhe que esta participação dos responsáveis tem por finalidade não apenas o acompanhamento dos estudantes, mas uma orientação para aqueles.

    Além destas infra-estrutura, deve-se pensar métodos pedagógicos inovadores e mais eficazes que despertem o interesse ao aprendizado. Afinal, sem eses interese, as coisa ficam muito difíceis!!!

    Se realmente houver a tendência, neste governo novo do PT, de investir na educação básica este é o momento. Gostaria de contar com sua participação. Entranto isto depende da aprovação no concurso do Estado.

    Abração

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