Vamos falar de novela.
Acabei de ver na internet uma notinha a respeito de críticas que estão sendo
feitas à novela Amor à Vida, exibida pela Rede Globo no horário das 21h. Diz a nota que os e as internautas não estão gostando nem um pouco de ver que não há
nenhum ator e nenhuma atriz negras na trama. Há quem diga que “não entende por
que há personagens gays, mas não há personagens negras e negros”. Já outro diz
que “A Globo mantém o seu racismo numa novela sem atores negros”. Passemos
adiante.
Eu também fiquei muito
incomodado com isso, além de não ter gostado do enredo da novela. Fiz um
esforço para assistir aos dois primeiros capítulos, mas a coisa não me agradou
nem um pouco. Tentei assistir a mais alguns, mas perdi a paciência principalmente
ao ver as cenas da personagem Valdirene, interpretada por Tatá Werneck. A
personagem é muito sem graça e a atriz parece que ou não entende muito bem da
coisa ou ainda está meio perdida e não conseguiu se localizar. A minha opinião
é a de um telespectador, portanto eu deixarei as críticas aos detalhes
mais específicos para quem entende do assunto.
O diretor de cinema Joel
Zito Araújo, uma das maiores autoridades brasileiras sobre o negro nas novelas,
que assina obras como o documentário A Negação do Brasil e Raça, este último em cartaz nos cinemas, manifestou-se através do seu perfil no Facebook a respeito
da novela citada acima. Disse ele que:
Por conta dessa declaração,
eu resolvi dialogar com ele (vejam só o tamanho da minha pretensão). Penso que
a novela Lado a Lado não foi produzida porque a Rede Globo se tornou mais
progressista e engajada na superação das desigualdades sociorraciais no Brasil
(o que esperar de uma emissora comandada por Ali Kamel?), e sim como uma maneira
que a Central Globo de Produção encontrou de desviar a atenção e calar a boca
do movimento negro. Pois é bom lembrar que esta novela foi ao ar justamente no
momento em que as críticas à personagem Adelaide, interpretada por Rodrigo
Sant'anna no Zorra Total, estavam ficando cada vez mais acintosas e contundentes.
Mulher, negra, pobre, mal-vestida, que "fala errado", desdentada, e que só se apresenta de maneira ridícula, vergonhosa e repugnante. Se isso não é uma agressão às mulheres negras desse país, o que é então? Se quiserem entender mais sobre esse tipo de "humor", veja Bamboozled - A Hora do Show.
Isso é tão procedente que a
Globo escalou ninguém menos do que Lázaro Ramos para ser o protagonista da
trama, e o colocou para contracenar com outra grande atriz brasileira que é
Camila Pitanga e outro grande ator que é Milton Gonçalves - que dispensa
comentários.
Ramos é o mesmo ator que
comanda o Programa Espelho, exibido toda segunda-feira no Canal Brasil às
21:30h, e que já levou à sua cadeira de entrevistas referências do movimento
negro na atualidade a exemplo do ex-deputado Carlos Alberto de Oliveira, o Caó,
autor da lei 7.716/89, que tipificou o racismo como crime inafiançável e
imprescritível, e que, em sua homenagem, foi batizada como Lei Caó; o presidente
do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa; a suplente de vereadora
e pedagoga Claudete Alves, autora do livro Virou Regra?, em que faz uma dura
crítica ao preconceito dispensado às mulheres negras no mercado matrimonial; a
filósofa, militante do movimento de mulheres negras e presidente do Instituto Geledés, Sueli Carneiro; o etnólogo cubano Carlos Moore, autor dos livros
Racismo e Sociedade e Fela: Esta Vida Puta, biografia autorizada do cantor e
ativista social nigeriano Fela Kuti; a escritora mineira Ana Maria Gonçalves, autora
do livro Um Defeito de Cor, que é uma das melhores representações ficcionais da
escravidão no Brasil; e Abdias do Nascimento, maior referência da luta
antirracista no Brasil, fundador da Frente Negra Brasileira e do Teatro
Experimental do Negro, e autor do livro O Genocídio do Negro Brasileiro.
Além disso, Ramos costuma
citar como dicas de leitura várias obras basilares para a compreensão do
racismo como fator estruturante e regulador das relações sociais no Brasil, a
exemplo de A Discriminação do Negro no Livro Didático, da pedagoga Ana Célia da
Silva; Da Diáspora, de Stuart Hall; o Relatório Anual das Desigualdades
Raciais, produzido pelo LAESER (Laboratório de Análises Econômicas, Históricas,
Sociais e Estatísticas das Relações Raciais) da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, que tem em seus quadros o economista Marcelo Paixão; o Mapa da Violência 2012, organizado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, dentre
outras.
Em suma, a Central Globo de
Produção sabia muito bem que Lázaro Ramos era o homem certo para protagonizar
uma novela como Lado a Lado. Afinal, os altos generais da Globo sabem quem Ramos
é e principalmente de onde ele veio. Acrescente-se a isso as personagens Tia
Jurema, interpretada por Zezeh Barbosa (o primeiro trabalho respeitável feito
por ela, visto que as personagens concebidas por Miguel Falabella sempre foram
horríveis, vide a Condessa Duvivier da novela Aquele Beijo, exibida em 2011);
Caniço, interpretado por Marcello Melo Jr. (as cenas de luta entre Caniço e Zé Navalha, interpretado por Ramos, ficarão eternamente na minha memória); Chico,
vivido por César Mello (que interpretou o episódio do “pó de arroz”, em que o
jogador Carlos Alberto, negro, teve de se pintar de branco para ser aceito no
time do Fluminense em 1914), dentre outros. As crônicas escritas por Cidinha da
Silva analisam muito bem o desenrolar dessa novela. Entrem no blog dela e
procurem. Vocês não vão se arrepender.
Depois de ter deixado a galera
extasiada, tudo voltou ao que era antes.
Essa estratégia funcionou
tão bem que no mesmo ano em que a novela Lado a Lado foi ao ar e, consequentemente,
a população negra ficou radiante de felicidade ao se ver representada na
telinha, a Rede Globo, em uma atitude de completo deboche às manifestações dos
grupos organizados na luta contra o racismo, produziu uma série de DVDs com os melhores momentos da personagem Adelaide no tal "humorístico". E o
mais surpreendente de tudo é que os mesmos grupos que estavam combatendo a tal
personagem parecem que não viram (ou, se viram, não deram a menor importância) essa chacota pública que a Vênus Platinada fez com as nossas reivindicações.
Debochar da nossa cara é
algo que a Globo faz com maestria. Vale dizer que o DVD de Adelaide foi lançado
em novembro de 2012. Justo o mês de novembro, que, depois de muita luta, foi
consagrado como Mês da Consciência Negra. A mesma coisa já tinha sido feita em
novembro de 2010 numa cena da novela Viver a Vida, em que a personagem Tereza
Saldanha, interpretada por Lília Cabral, tascou uma sonora bofetada na cara da
protagonista Helena, vivida por Taís Araújo (a primeira Helena negra de Manoel
Carlos), numa cena extremamente humilhante em que Helena ficou de joelhos na
frente de Tereza implorando por perdão, e recebeu como resposta o bofetaço no
rosto. Essa cena foi exibida em pleno dia 20, que é o Dia da Consciência Negra.
Se isso não foi uma provocação descarada, eu não sei de mais nada.
Para finalizar: além de calar a boca do movimento negro, a Rede Globo abriu um precedente favorabilíssimo. Pois da próxima vez em que a referida emissora for acusada de racismo, podem ter certeza de que os seus altos oficiais virão a público com o mesmo argumento de sempre: "Racistas, nós? Que absurdo! Nós até produzimos recentemente uma novela com um elenco majoritariamente negro, com um ator negro como personagem principal. Calúnia!! Os patrulheiros do politicamente correto não nos deixam em paz!!!"
Para finalizar: além de calar a boca do movimento negro, a Rede Globo abriu um precedente favorabilíssimo. Pois da próxima vez em que a referida emissora for acusada de racismo, podem ter certeza de que os seus altos oficiais virão a público com o mesmo argumento de sempre: "Racistas, nós? Que absurdo! Nós até produzimos recentemente uma novela com um elenco majoritariamente negro, com um ator negro como personagem principal. Calúnia!! Os patrulheiros do politicamente correto não nos deixam em paz!!!"