quarta-feira, 27 de julho de 2011

Racismo é engraçado?

Estava navegando pela internet despropositadamente quando vi no site do Instituto Geledés uma nota sobre uma acusação de racismo contra o SBT. O texto repudiava uma apresentação, feita no Programa Silvio Santos, de um humorista que atende pela alcunha de “Mulher Feijoada”, negro e presumidamente homossexual, que levou o auditório ao delírio ao contar piadas racistas do começo ao fim do seu “espetáculo”. Aquela velha postura de escravo da casa-grande que faz de tudo para agradar o senhor de engenho, incluindo aí servir de bobo-da-corte para os convidados deste.


Desnecessário dizer que eu ODIEI esse showzinho tétrico. Falo isso porque um dos instrumentos mais poderosos a serviço do racismo é justamente o humor. As piadinhas racistas têm um poder extraordinário de naturalizar o racismo na cabeça das pessoas. Afinal, tendemos a gostar e a aceitar aquilo que nos faz rir. Até já escrevi sobre isso.

É também por causa disso que o combate ao racismo se torna mais difícil, até porque toda pessoa que vai de encontro ao que é “engraçado” invariavelmente é tachada de chata, mala e mal-humorada. Porra, será possível que você não desliga nem na hora de se divertir? Logo, tudo é aceito como uma simples "brincadeira". Quem é louco de expressar seu ódio racial com afirmações veementes ao outro? Os nossos racistas dificilmente têm coragem de dizer na cara o que pensam sobre as pessoas que mais odeiam na vida. Que o diga a baiana eleita a mais bela descendente de italianos neste ano.

Toda vez que eu condeno publicamente a postura das pessoas que se utilizam do humor para veicular e reforçar estereótipos racistas, machistas e homofóbicos na mente dos outros, a reação é sempre a mesma: você está vendo coisa onde não existe, isso é coisa da sua cabeça, "é só uma piada", você não tem senso de humor, "toda piada tem uma vítima" (curioso é que as vítimas são sempre negros, gays, mulheres, gordos... Por que ninguém faz piada com homens brancos, ricos, europeus e heterossexuais?), é assim mesmo, fazer piada é o trabalho do cara... Ele vive disso, pô!
Se algum humorista fizesse, por exemplo, piada de judeu (se o humorista não fosse judeu, é claro), não faltaria gente para repudiá-lo pelo antissemitismo. Mas quando alguém rechaça piadas contra negros, essas mesmas pessoas dizem que nós estamos enchendo o saco, que nós não temos o que fazer, que nós somos paranóicos que vemos racismo em tudo, que nós somos complexados, que ninguém pode falar mais nada... Tudo é racismo, tudo é preconceito, QUE PORRA!!!

Há três anos, a Federação Israelita do Rio de Janeiro entrou na justiça para impedir que um carro alegórico da Viradouro que trazia uma suástica e uma imagem de Hitler desfilasse na Sapucaí. Não me lembro de ter visto, lido ou ouvido nenhuma declaração ofensiva contra os judeus ou tentando minimizar a tragédia e o sofrimento impostos pelo nazismo. Afinal de contas, eles estão certos; o holocausto nazista foi um dos maiores crimes da história, seis milhões de judeus foram exterminados nos campos de concentração, um absurdo!

(Como disse o poeta martinicano Aimé Césaire, os europeus, antes da ascensão do Terceiro Reich, protagonizaram inúmeras carnificinas fora da Europa tranquilamente. Quem já leu alguma coisa sobre o tráfico de escravizados sabe do que eu estou falando. Populações inteiras e culturas milenares foram aniquiladas na Ásia, na América e na África durante séculos e os europeus que ficaram lá na Europa acharam que isso era o certo, pois tratava-se de povos "atrasados" e "inferiores" que os europeus tinham a obrigação moral de "domesticar".

Quando o poeta irlandês Roger Casement denunciou as atrocidades cometidas pelo regime do rei belga Leopoldo II no Congo, que matou cerca de trinta milhões de pessoas de 1885 a 1908, ninguém levou o cara a sério. O grande arquiteto intelectual do nazismo, o médico alemão Eugen Fischer, testou a validade das suas teorias, aprendeu a construir campos de concentração e a matar pessoas na ilha de Shark, na Namíbia (tomem conhecimento disso aqui). Entretanto, ele não foi execrado por ninguém devido a isso.

Mas quando Hitler e os seus cupinchas usaram toda essa experiência acumulada em construir máquinas da morte para fazer a mesma coisa dentro da Europa, foi um absurdo. Veio a criação da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos [promulgada numa época em que os mesmos europeus ainda estavam escravizando, explorando, estuprando e exterminando gente nas colônias africanas], a Convenção de Genebra e o caralho a quatro. Tudo porque os europeus tinham de se proteger deles mesmos.

Pimenta no rabo dos outros é refresco.)

Se fosse uma entidade do movimento negro que entrasse na justiça para impedir que um carro alegórico de uma escola de samba qualquer desfilasse exibindo uma imagem de um negro sendo chibateado no tronco, essas mesmas pessoas torceriam o nariz, diriam que isso é uma bobagem, a história foi assim mesmo
(o fato serviria apenas para uma retratação dos fatos históricos que constituem a formação do país), os negros já gostam de se fazer de vítima, a escravidão já passou e que os negros não melhoram de vida porque só ficam pensando no passado ao invés de esquecê-lo, olhar para a frente, trabalhar duro e cuidar da vida. Ahhh, que saco!!

E ainda gritariam no final: "CENSURA! CENSURA! OS NEGROS QUEREM ACABAR COM A LIBERDADE ARTÍSTICA NO PAÍS!!!"

terça-feira, 12 de julho de 2011

Futebol feminino, machismo e discriminação racial: o que uma coisa tem a ver com a outra?

Como boa parte da população brasileira não sabe, está rolando a Copa do Mundo de Futebol Feminino (hã?! Copa do Mundo de Futebol Feminino?!?!! Onde?!). As partidas começaram no final do mês passado e a final acontecerá no próximo dia 17 de julho. A grande imprensa, com destaque para a Rede Globo, não está dando nenhum destaque à competição. Em ano de Copa do Mundo de futebol masculino, as emissoras de televisão, os jornais, as revistas e os anúncios publicitários começam a encher o saco desde o início do ano sobre o Brasil na Copa, o povo brasileiro tem que torcer, devemos prestigiar a pátria de chuteiras, é o Brasil, o Brasil, o Brasil... Já quando as mulheres estão em campo...

Se não fosse a Band, as poucas pessoas que ficaram sabendo disso não teriam a oportunidade de ver os jogos. Mas não poderia ser diferente, pois, afinal de contas, a Band é a única emissora brasileira que incentiva o futebol feminino no nosso país. Luciano do Valle tem os seus erros, mas é o único grande jornalista esportivo que prestigia as mulheres futebolistas e cobra maior apoio dos patrocinadores e da CBF para que elas possam ter as condições mínimas necessárias para viver do esporte.

Infelizmente, a seleção foi eliminada pelos Estados Unidos nas quartas-de-final no domingo passado. Apesar de a zagueira Daiane ter feito um gol contra logo no começo do jogo e ter perdido um pênalti, não foi por causa disso que as nossas mulheres foram desclassificadas do certame (é bom dizer isso para depois algum espírito de porco não tentar fazer com ela a mesma coisa que fizeram com o goleiro Barbosa após a derrota da seleção brasileira na final da Copa de 1950). O gol contra foi uma infelicidade, e o desperdício do pênalti foi compreensível para uma jogadora que atuou durante cento e vinte minutos e, portanto, estava fisicamente cansada e psicologicamente abalada por conta do lance infeliz no início da partida.

O maior erro foi do treinador Kleiton Lima, que armou o time errado, subaproveitou jogadoras importantes e não fez as alterações no momento certo – além, é claro, de ter escalado uma jogadora emocionalmente desestabilizada para bater um pênalti. Deixei um comentário lá no site da Band sobre isso. Se quiserem conferir, fiquem à vontade.

Entretanto, eu não quero fazer outra resenha da partida. Quero, na verdade, levantar uma discussão acerca de outros aspectos relacionados à transmissão, especialmente a forma como é vista a mulher no esporte. Pode parecer estranho, coisa de maluco que vê coisa onde não existe. Que seja! Eu fui treinado para prestar atenção aos detalhes, àquilo que a maioria das pessoas não vê (não estou me autoelogiando publicamente, mas apenas dizendo que o meu trabalho é esse. Não faço mais do que a minha obrigação). Estava eu assistindo a Brasil X Noruega, jogo realizado no dia 3 de julho, e vi e ouvi que o comentarista Neto não parava de rasgar elogios à beleza das jogadoras norueguesas. Ele não cansava de dizer que elas eram lindas, maravilhosas, como tem mulher bonita na Noruega!!! Isso começou a me incomodar um pouco, e por isso resolvi ficar mais atento. Parece até que eu estava adivinhando o que viria em seguida.

No segundo tempo, ele não aguentou. Tornou a rasgar mais e mais elogios à beleza das norueguesas e, na volta do intervalo, soltou a seguinte pérola: "se beleza ganhasse jogo, já estaria oito a zero para a Noruega".

(Curioso que nenhuma jogadora brasileira é bonita aos olhos dele. Nem Érika, a única loira do time. Ou seja, não basta ser loira para ser bonita. É preciso ser europeia ou descendente de europeus.)

No jogo seguinte, contra a Guiné Equatorial, observei com atenção máxima as palavras dele e constatei que ele não fez um comentariozinho sequer sobre a beleza das jogadoras guineenses. Por que será? Deve ser porque mulheres negras não são bonitas, não é mesmo?

Aposto que se alguém disser a ele que o comentário feito acerca das norueguesas é racista, ele jurará que não e ainda dirá que está cansado dos patrulheiros do politicamente correto. Já estou até vendo - e ouvindo: "Ihhhhh! Que saco! Será possível que eu não posso falar mais nada?! Tudo é racismo, tudo é preconceito, QUE PORRA!!!"


Para completar, ele fez a mesma coisa na partida entre Brasil e Estados Unidos. Em um determinado instante em que a goleira Hope Solo apareceu na imagem (ela foi a mais privilegiada pela geradora das imagens, é claro), o narrador Luciano do Valle falou que ela era uma goleira muito competente e habilidosa. Neto não perdeu a chance: "habilidosa E LINDA!"

Dei uma olhada nas reportagens sobre o jogo disponíveis na internet, e todas elas trouxeram na manchete "a musa Hope Solo eliminou o Brasil...", "a goleira vira musa...", "musa Hope Solo isso...", "musa Hope Solo aquilo..."

Ou seja, pouco importa se ela é competente, pouco importa se ela teve uma boa atuação na partida, pouco importa o fato de ela ter defendido duas cobranças de pênalti. Importa mesmo o fato de ela ser linda – e nada mais.

Quando os homens estão jogando, ninguém repara na beleza deles. Pouco importa se eles são bonitos ou feios, o que interessa é saber jogar e colocar a bola nas redes do adversário (quer dizer, também não é assim. Afinal de contas, quando vocês viram um jogador africano ou asiático aparecer nas listas de jogadores mais bonitos da Copa? O único brasileiro que apareceu na lista de bonitões da Copa 2010 foi Kaká. Mas Kaká é preto?). Já com relação às mulheres, a mídia só quer saber da beleza física delas. Por que isso? Elas entraram em campo para jogar futebol ou para um desfile de moda? Não sei vocês, mas eu penso que a beleza física de uma mulher é desimportante quando ela decide praticar um esporte. O que importa é competência, habilidade e preparo para obter o máximo de rendimento. Ou eu estou errado?


sábado, 2 de julho de 2011

Marcha das Vadias em Salvador – 02/07/2011

Sou militante antirracista há sete anos. Entretanto, percebi depois de um certo tempo que não basta lutar só contra o racismo por uma razão bem simples: o racismo não age sozinho. A homofobia, o preconceito de classe e o machismo, por exemplo, são ideologias tão destruidoras quanto a primeira e não agem isoladamente. Muito pelo contrário.

Eu fui criado com base em todos esses valores (e quem não foi?), e resolvi lutar contra todos eles assim que tomei consciência disso. Para tanto, resolvi ir hoje à Marcha das Vadias em Salvador. O movimento, que teve como epicentro a cidade de Toronto, no Canadá, já aconteceu em vários países e algumas capitais brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Brasília, Recife e Fortaleza, pelo que sei) e, aqui em Salvador, foi realizado em concomitância com as comemorações dos 188 anos da Independência do Brasil na Bahia e transcorreu com muita tranquilidade, descontração e uma forte contestação ao machismo e ao sexismo reinantes em nossa sociedade.

Várias foram as bandeiras levantadas pelas manifestantes (descriminalização do aborto, apoio à causa LGBT, repúdio à usina de Belo Monte), mas a mais enfatizada nas faixas e cartazes foi o enfrentamento à cultura do estupro. Todas as participantes fizeram questão de contestar a ideia que divide as mulheres desde cedo entre “santas” e “putas”, reivindicaram o direito inalienável de serem donas dos seus corpos e repudiaram o pensamento dominante que, ao invés de condenar o agressor, coloca sobre as vítimas a culpa por terem sofrido violência sexual – como se fosse possível alguém pedir para ser violentada, espancada, torturada e até assassinada com requintes de crueldade.

A causa é nobre, a iniciativa é louvável, os motivos são justos, mas apesar disso houve quem tentasse desqualificar os propósitos da Marcha. Em um dado momento, um babaca apareceu na janela da casa dele vestindo uma camisa vermelha com a mensagem “A minha camisa fica vermelha quando eu fico excitado” e começou a fazer deboche da cara de algumas manifestantes (que prontamente responderam ao imbecil com uma sonora vaia). Minutos depois, a minha esposa se aproximou de mim e disse que ouviu um sujeito negro, gordo, vestindo uma camisa que trazia uma imagem de uma mulher com o cabelo black power olhar para a manifestação e dizer: “isso tudo é uma tremenda baixaria”. Ou seja, o sujeito se diz (ou pelo menos aparenta ser) um ativista antirracista, mas acha que mulher tem que ficar em casa esquentando a barriga no fogão, esfriando no tanque e cuidando dos filhos.

(É óbvio que não foram todos os homens que agiram assim. Aqueles que se solidarizaram com a causa foram muito bem recebidos e tratados pelas mulheres presentes, o que mostra que esse clima de guerra dos sexos não leva a lugar algum e que as feministas não são naturalmente androfóbicas ou, como se diz atualmente, feminazis.)

Quis tirar muitas fotos, mas não tirei porque a minha máquina deu defeito. Só consegui tirar cinco. É pouco, mas foi o que eu consegui e por isso vou coletivizar convosco. Confiram abaixo:

Foto 1



Foto 2



Foto 3



Foto 4



Foto 5