quarta-feira, 30 de março de 2011

Salvador, 462 anos. Comemorar o quê?

Ontem, Salvador fez aniversário: 462 anos. Não publiquei o texto no dia 29/03 porque não pude escrevê-lo em tempo hábil. Mas, como diz o costume, o que vale é a intenção. Como eu moro e transito na cidade todo dia, não faz muita diferença o fato de ter publicado os meus escritos um dia depois. Eu acho.

Esse papo de exaltar as belezas da cidade, as praias paradisíacas, o carnaval, a culinária, a religiosidade (de uma forma bastante estereotipada, diga-se de passagem), a terra do axé, já deu. Não estou aqui para falar disso. Afinal de contas, eu não sou agente de turismo.

O que eu quero mesmo é fazer uma homenagem ao povo dessa cidade. Não à parcela branca e rica que odeia e repudia a herança cultural africana, que acha que ser preto só é bonito no Carnaval (e olhe lá), mas se utiliza dela (e deles) sem o menor pudor para se promover ou auferir algum benefício. Se os “bem-nascidos” cagam para mim, eu também cago (e continuarei cagando) para todos eles.

Quero exaltar as pessoas que ralam todo dia para sobreviver nessa selva. Que saem de casa sem saber se retornarão. Que têm de aguentar tudo o quanto é miséria em nome do sustento próprio e da sua família. Que pegam ônibus lotado todo dia de manhã para ir trabalhar e à noite na hora de voltar para casa. Que, depois de terem sido exploradas o dia inteiro, ainda encontram energias para estudar à noite e sonhar com um futuro melhor. Que vivem num lugar onde os mais ricos ganham vinte e cinco vezes mais do que os mais pobres. Que têm de morar numa cidade onde morrem em média de 25 a 30 pessoas assassinadas por fim de semana – e que há pessoas que acham isso normal. Que têm de driblar as arapucas que o racismo impõe à maioria da sua população, pois a Bahia só é a terra da felicidade nas propagandas da prefeitura e das agências de turismo. Que ouvem dizer que têm o carnaval mais democrático do mundo, mas observam uma minoria curtindo o melhor do luxo enquanto os excluídos têm de acampar na rua durante uma semana para ganhar algum trocado vendendo cerveja e churrasquinho, catando latas e garrafas e segurando corda nos blocos. Que veem um cantor receber R$ 2 milhões para tirar a barba em uma ação promocional de uma marca de barbeadores, enquanto muita gente passa fome. Em que um bloco chega a cobrar R$ 1.200 por um abadá, mas paga uma diária de R$ 30 a um cordeiro (quando paga) sem dar ao cara água, protetor de ruído, luvas e o direito de usar o banheiro do trio. Que vive num apartheid sem as leis do apartheid.

Pessoas que, infelizmente, ainda têm de dormir em uma fila no posto de saúde para pegar uma senha e ser atendida daqui a dois ou três meses (isso se o médico não faltar no dia da consulta, é claro). Que, por não ter grana, têm de colocar os filhos e filhas para estudar numa escola pública lenhada, sem professores, bibliotecas, computadores, merenda, e que ainda ouvem que os seus filhos não têm bom desempenho escolar porque são burras e desinteressadas (“elas não querem nada”). Que saem todos os dias às ruas para montar a sua banca de camelô, vender água, doces, picolé e caneta nos ônibus e DVD pirata na Lapa, na Avenida Sete, na passarela do Iguatemi e na Estação Rodoviária. Que fazem quatro a cinco faxinas por dia para conseguir dar o que comer às suas crianças. Que limpa vidro de carro nas sinaleiras. Que aguentam os passageiros malas quando estão dirigindo e passando troco dentro dos ônibus. Que têm de aguentar motoristas escrotos que não param no ponto, que dão banho de lama nas pessoas só de sacanagem, e cobradores mal-educados e mal-humorados.

Que começam a tremer de medo de a casa construída no morro com tanto sacrifício desabar quando caem os primeiros pingos de chuva, e depois ainda têm de aguentar o pessoal da SUCOM dizer para elas não ocuparem as encostas quando o Estado tinha a obrigação de dar-lhes moradia decente. Que fumam crack nas ruas e debaixo dos viadutos para tentar esquecer a condição de subalternidade, exclusão e invisibilidade a que são impostas. Que vendem pequenas quantidades de droga nas ruas por não encontrar outra oportunidade de emprego, mas são apresentadas como megatraficantes perigosos no Na Mira e no Se Liga Bocão. Que carregam compras nas portas dos supermercados em carros de mão para ganhar R$ 3 e ainda serem chamadas de preguiçosas. Que vendem caldo de cana nas ruas. Que vendem café e cigarro nas guias de cafezinho (uma mais criativa do que a outra). Que se viram para não sucumbir.

Que, mesmo tendo de enfrentar todas essas mazelas, ainda encontram maneiras de se divertir (afinal, ninguém é de ferro). Que se divertem no pagodão por essa ser a única possibilidade de diversão que o pobre pode pagar (inteira R$15, casadinha R$20. Junta dez meu, dez seu e vamos embora). Que vão ao Barradão ou a Pituaçu ver o time do coração jogar, pagam um ingresso caro para um jogo que começa às 22h e mofam no ponto de ônibus depois que o jogo acaba tarde da noite. Que curtem Gerônimo toda terça-feira na Escadaria. Que não abrem mão de tomar um cravinho no Bar do Cravinho. Que frequenta, aprecia e declama suas poesias toda quarta-feira no Sarau Bem Black do Bar Sankofa (salve Nelson Maca!). Que vão, pelo menos uma vez por mês, ao Tia Célia comer aquela feijoada. Que curtem as praias da cidade, apesar do cenário desolador que se formou após a derrubada das barracas. Que curtem a noite de sábado na Ribeira ou no Beco dos Artistas. Que vão ao Bonfim toda sexta. Que vão ao Opô Afonjá receber a energia de Mãe Stella. Que vão à Igreja Universal toda terça participar da sessão do descarrego.

Que sambam gostoso nos partidos da Liberdade. Que gostam de ver a saída do Ilê no carnaval, e as demais festas que ocorrem durante o resto do ano na Senzala do Barro Preto. Que juntam os amigos e amigas de vez em quando para jogar conversa fora e comer acarajé no Rio Vermelho, em Itapuã e nas demais bancas espalhadas pela cidade. Que vão ao Vila Velha curtir e aprender com o Cabaré da Rrrrrrrraça e demais espetáculos do Bando de Teatro Olodum. Que aproveitam a rica, porém nem sempre acessível, vida cultural da cidade.

Gente que, nas palavras de João José Reis, “reagem, negociam, resistem, atacam, se juntam solidários, às vezes vencem, outras perdem, raramente desistem”. É para vocês que eu presto a minha homenagem e dedico essas palavras.

Animai-vos, povo bahiense! É tudo nosso!!

terça-feira, 8 de março de 2011

Por que eu não gosto de carnaval - Parte 2

Antes leia a parte 1

Motivos pessoais à parte, à medida que eu fui envelhecendo, lendo, estudando e aumentando o meu nível de criticidade, comecei a ver outros motivos para não ter a menor simpatia por essa festa. Vamos a eles: o carnaval de Salvador, ao contrário da propaganda feita pelas agências de turismo e demais setores comerciais que lucram absurdamente em uma semaninha de farra, já deixou de ser democrático e popular há muito tempo (se é que algum dia já o foi). Quem for endinheirado curtirá a festa com o maior conforto e segurança possíveis dentro das cordas dos blocos ou dos cada vez mais luxuosos camarotes (os mais badalados não vendem ingressos justamente para não correrem o risco – remotíssimo - de ter de aguentar um indesejável-atrevido descompreendido-que-não-sabe-o-seu-lugar lá dentro. O acesso é só para convidados). Quem não tem grana, está condenado a curtir a festa em espaços cada vez menores (pois a cada ano os camarotes avançam mais em direção à pista e o diâmetro do espaço delimitado pelas cordas aumenta), superlotados, e por aí vocês já podem prever o resultado dessa combinação: muita gente, pouco espaço, cervejas e otras cositas más na mente, música eletrizante... Os furtos, os assédios sexuais e a porradaria rolam soltos. E a Polícia, como sempre, quando vê a confusão, sai distribuindo cacetada em cima de quem encontrar pelo caminho como método de debelar e prender os briguentos no melhor estilo “bata primeiro e pergunte depois”.

A segregação sociorracial existente nessa festa aparentemente democrática é gritante e me revolta profundamente (racismo, onde?! No carnaval?!! Claro que não. Eu nunca vi nada disso. Todos brincam e se divertem harmoniosamente; o carnaval é uma festa de todos. Esse Rogério é um insuportável mesmo. Está a cada dia pior. Depois que passou a andar com esses vagabundos desocupados do Movimento Negro, pegou essa mania triste de ver racismo em tudo). Não estou dizendo que isso é invenção do carnaval, pois não é. O carnaval é um produto da sociedade em que vivemos, e se esta é desigual, racista, machista, excludente, hierarquizada, autoritária e violenta com os mais pobres, nada mais lógico que o carnaval reproduza tudo isso. O impacto só é maior porque o espaço onde essas coisas acontecem é muito pequeno, mas os camarotes, os cordeiros e demais subalternizados existem durante o ano inteiro. Basta observar como e onde são feitas as festas para os pobres e como e onde são feitas as festas para os ricos.

Poderia citar vários exemplos de racismo no carnaval, mas me deterei apenas em alguns. É revoltante ver pessoas que literalmente acampam nas ruas durante todo o período da festa para ganhar uns trocados vendendo cerveja, refrigerante, água e churrasquinho. É duro saber que aquelas pessoas precisam morar na rua durante uma semana com os seus filhos pequenos para tirar o sustento da família. Além de ter de pagar uma fortuna com o licenciamento na prefeitura para não ter as suas mercadorias apreendidas (quem pensa que o rapa acabou está muito enganado), elas ainda têm de enfrentar a marcação dos prepostos da Vara da Infância e da Juventude que querem autuar os pais e mães das crianças por terem-nas exposto a condições insalubres e a situações de perigo iminente às suas integridades físicas (que palavreado bonito!). É muito fácil perseguir as pessoas que levam os seus filhos para o local de trabalho por não ter com quem deixá-los, quando esse mesmo Estado que só aparece na hora de cobrar impostos e punir quem não cumpre os seus ditames tem a obrigação de construir creches dignas para que as trabalhadoras possam deixar as suas crianças em um local seguro enquanto estiverem trabalhando – e não as constrói.

(Quando eu falo isso, sempre aparece alguém para dizer que essas pessoas podiam deixar as crianças com uma vizinha, como se a vizinha tivesse obrigação de tomar conta dos filhos dos outros.)

Outro exemplo escandaloso da discriminação racial no carnaval é a já conhecida situação dos cordeiros. Trata-se de pessoas desempregadas ou subempregadas (o exército industrial de reserva, para usar um jargão marxista) que são cooptadas pelos blocos para segurar as cordas e separar aqueles que pagaram valores absurdos por um abadá da vil canalha preta e favelada que só vai à rua causar tumulto e roubar os outros. Tem carnaval lá em Cajazeiras, na Liberdade e no Subúrbio Ferroviário, então por que essa gente não fica lá ao invés de ir à Barra incomodar a gente de bem que só quer se divertir em paz?

Eu já sonhei várias vezes com o ano em que os cordeiros se negariam a segurar corda no carnaval, só para ver o que os donos de bloco fariam diante disso. Entretanto, é bom manter os pés no chão e não viajar na maionese. O desemprego estrutural da nossa sociedade existe justamente para reduzir essas pessoas a uma situação tão aviltante, a ponto de elas se verem obrigadas a aceitar fazer qualquer coisa em troca de uma micharia. Ninguém dá ponto sem nó.

Em conversa com amigos e vizinhos (alguns deles que já trabalharam como cordeiros), soube de casos em que um playboyzinho dentro do bloco agrediu uma pessoa que estava fora das cordas e, depois, correu para perto do trio e deixou o cordeiro lá de apara-bala. Ou seja, além de trabalhar em condições subumanas (pouca água, comida insuficiente, sem um calçado adequado [que os blocos teriam obrigação de dar, mas entraram na Justiça atrás de respaldo legal para descumprir a legislação trabalhista], ouvindo aquele som insuportavelmente alto com risco de desenvolverem problemas auditivos), essas pessoas ainda têm de servir de colete à prova de balas da playboyzada. E depois ainda há quem culpe exclusivamente os pobres pelos altos índices de violência no carnaval.

Não posso deixar de citar que, além de tudo isso que eu descrevi acima, os cordeiros e cordeiras (sim, há mulheres que também trabalham com isso) sofrem para receber os seus pagamentos depois que a festa acaba. Todo ano, a coisa se repete: filas enormes se formam nas portas das sedes dos blocos compostas por pessoas que trabalharam, mas não receberam os seus pagamentos na data previamente combinada. E quando elas se valem do direito legítimo de protestar contra esse descaso com que são tratadas, a Polícia ainda aparece lá para baixar a porrada em todo mundo sob o pretexto de “manter a ordem e conter os excessos”.

Um dos meus cunhados é segurança profissional e trabalha no carnaval há um bom tempo. Ele apareceu aqui em casa no domingo, e, como ainda estava escrevendo este texto, aproveitei para conversar com ele sobre o assunto a fim de obter algumas informações sobre o trabalho dele durante a festa. Contou ele que, já há alguns anos, integra a equipe que faz a segurança de cinco homens que vêm dos Estados Unidos anualmente para se esbaldar em Salvador. A miséria já começa na saída do aeroporto, pois os turistas têm de sair em comboio com escolta armada se não quiserem correr o risco de serem assaltados já na saída do bambuzal (passagem que fica a cerca de duzentos metros do portão de desembarque do aeroporto). Em outras palavras, ele, que é pai de cinco filhos, tem de fazer a proteção dos gringos, enfrentar os bandidos à bala se necessário e correr o risco de morrer e deixar a mulher sozinha com essa pequena trupe para que os estrangeiros não sofram um arranhão (ai do meu cunhado se acontecer alguma coisa com um desses caras aqui no Brasil). Como se não bastasse, ainda de acordo com ele, os turistas não param quieto: vão ao Campo Grande, depois de cinco minutos querem ir à Barra, depois querem voltar para o Campo Grande, em seguida ir para Ondina... Para finalizar, ele ainda disse que os gringos usam muita droga para ficarem acordados e não perderem um minuto sequer da gandaia, e para isso pedem aos seguranças para comprar cocaína e trazer prostitutas para eles. Ainda bem que o meu ramo de trabalho é outro, pois se eu não uso drogas proibidas por lei justamente para não ter de ir à boca-de-fumo comprar para mim, eu jamais iria à boca-de-fumo comprar droga para safado nenhum. Não iria, e não irei.

***

O circuito do Campo Grande-Praça Castro Alves está sendo progressivamente desprestigiado. Os blocos mais badalados já não desfilam mais lá. Alguns blocos afro e afoxés, que só desfilavam neste circuito em nome da tradição, já migraram para o circuito Barra-Ondina inclusive por questão de sobrevivência. Como as emissoras de televisão só querem ficar na Barra (só colocam alguns gatos-pingados na Avenida para cumprir tabela), e aparecer na TV é uma maneira de se mostrar e atrair a atenção do público assim como anunciantes (uma vez que os blocos afro estão sendo progressiva e muito sutilmente eliminados da festa via asfixia financeira), a migração é de certa forma até justificada. O empresariado carnavalesco baiano até já tentou acabar com o circuito Osmar (batizado assim em homenagem a Osmar Macedo, um dos inventores do trio elétrico), mas desistiu por causa do forte alarde feito pelos defensores da tradição; afinal de contas, disseram eles, foi na Avenida que tudo começou e, portanto, não é justo que esse circuito seja extinto. Isso não significa que os empresários foram demovidos da ideia, eles simplesmente só estão esperando os tradicionalistas morrerem para executar o seu plano em paz e sem risco de passarem por tiranos e impopulares.

O maior símbolo do descaso com o circuito tradicional da festa (o Barra-Ondina surgiu inicialmente como alternativo) é o encontro de trios, que acontecia na quarta-feira de Cinzas, que já não é realizado há mais ou menos cinco anos e que foi substituído pelo arrastão de Carlinhos Brown e Ivete Sangalo (ô mulherzinha sem graça!). As estrelas da axé music já não se apresentam mais lá com frequência. Os patrocinadores já não exibem mais as suas marcas no trajeto, pois a quantidade de pessoas que veriam a publicidade cai ano após ano, além do fato de as redes de televisão não se interessarem mais em fazer a cobertura do evento na Avenida.

Diante disso, fica notório que foi-se o tempo em que as pessoas traziam as suas cadeiras de casa e colocavam na rua para ver os blocos passarem. Cada vez mais, o carnaval de Salvador torna-se artigo de luxo, e os pobres só podem ir ou para trabalhar ou para tomar porrada da Polícia. Como disse Thaíde e DJ Hum, “que tempo bom, que não volta nunca mais”.

sábado, 5 de março de 2011

Por que eu não gosto de carnaval - Parte 1

Eu não gosto de carnaval. Em algumas vezes que eu disse isso, dentro e fora de Salvador, fui olhado com uma cara de estranheza e incredulidade, como se quisessem dizer “esse cara é baiano e não gosta de carnaval?! Impossível! Ele só pode estar de sacanagem”. Mas eu me pergunto: por que as pessoas acham que todo baiano TEM obrigação de gostar de carnaval? Todo russo gosta de vodka e de balalaica? Todo alemão gosta de chucrute ou salsichão? Todo japonês gosta de saquê? Todo estadunidense gosta do basquete da NBA, de comer aqueles hambúrgueres enormes e gordurosos e de usar aquelas roupas do pessoal do rap? Faz sentido acreditar que todas as pessoas têm obrigação de gostar de tudo o que dizem que as pessoas daquele grupo devem gostar? Fica a dúvida.

A minha rejeição não é por má vontade, do tipo “não vi e não gostei”. Eu já tentei gostar de carnaval, mas não consegui. Quando eu era bem criança, minha mãe inventou de me levar ao carnaval junto com o meu irmão mais velho. Até hoje, guardo na mente aquele mar de gente pulando no meu entorno, aquele misto de claustrofobia, dificuldade para respirar e desespero por não ter a menor condição de sair do meio daquela turba ensandecida. Meu irmão, coitado, levou uma puta pisada no pé desferida por um homem enorme, e em consequência disso não agüentou nem andar de volta para casa. Teve de ser carregado pela minha mãe. Tempos depois, eu relembrei o fato e perguntei à minha genitora por que ela fez aquilo comigo. Ela disse que nos levou ao carnaval porque trabalhava muito (isso é verdade), não tinha tempo (nem oportunidade) para dar um passeio conosco e porque foi uma das poucas chances que teve de nos levar a um lugar diferente. Porra, mas logo no carnaval? Será possível que não havia lugares mais agradáveis – e recomendáveis - para duas crianças passearem e se divertirem? Se eu tivesse filhos e não tivesse tempo de sair com eles, eu jamais os levaria àquele pandemônio quando tivesse uma brechinha na minha agenda.

Por causa disso, passei a infância e a adolescência inteiras traumatizado com o carnaval. Contudo, esse trauma vinha acompanhado de uma enorme curiosidade. Até os 17 anos, sempre ouvi as opiniões mais dicotômicas possíveis acerca da folia momesca; percebi que carnaval é algo que as pessoas amam ou odeiam, e que não há meio termo. Carnaval é muito bom, carnaval é uma merda, eu adoro carnaval, eu detesto carnaval, eu não vejo a hora de começar a festa para eu cair na gandaia, eu não vejo a hora de essa bosta acabar para a cidade voltar ao normal... Essa marcante diferença de opiniões exerceu forte pressão na minha cabeça durante a minha adolescência, e eu resolvi que era hora de enxergar a desgraceira com os meus próprios olhos.

Quando completei 18 anos, em 1998, combinei com um colega de escola para irmos ao carnaval. No dia anterior, ele ligou para mim e disse que não conseguiu dinheiro com a mãe dele para sair, pois ela é evangélica e não daria grana para o filho se perder na festa do demônio. Como já estava decidido a tirar as minhas próprias conclusões, e ninguém me demoveria disso, resolvi que iria sozinho – e fui. Já no ônibus, percebi que carnaval de fato não é festa para qualquer um. Não sei o que acontece, mas as pessoas ficam tresloucadas durante os dias de festa: uma gritaria desgraçada dentro do ônibus (não que as pessoas viajem em silêncio costumeiramente, é claro), gente sentada no encosto da cadeira com os pés no assento, vários fumando, outros bebendo, alguns tocando, pegando, mexendo e dizendo impropérios às mulheres... Enfim, uma zona infernal.

Passado o sufoco de descer na Estação da Lapa e encontrá-la tomada de gente, com dificuldade para dar um simples passo, consegui chegar ao circuito da festa. E as minhas expectativas se confirmaram: carnaval não é festa para mim mesmo! Os quebra-paus aconteciam por segundo. Em um dado momento, tive de ficar mais de meia hora junto a um posto da Polícia Militar para não correr o risco de ser agredido por um (ou mais de um) daqueles monstros. Houve um que me viu sozinho, segurou meu braço e tentou me jogar no meio de um fuzuê, mas eu alterei a voz (não sei de onde tirei tanta coragem) e ordenei ao safado que largasse o meu braço. Mas nada disso me deixou mais apavorado quanto uma cena que vi alguns minutos depois: estava andando pelo Campo Grande, nas imediações do Hotel da Bahia, quando vi um grupinho se estapeando. Um conseguiu acertar um soco no outro, e esse outro caiu. Quando este colocou as mãos no chão para se levantar, recebeu um violento chute no tórax do mesmo cabra que o derrubou. Ao ver isso, os amigos do nocauteado correram para protegê-lo e vingar as porradas dadas pelo valentão. Quando este correu para fugir, se bateu com uma guarnição de cinco soldados da tropa de choque da Polícia Militar (um maior e mais parrudo do que o outro) e caiu. Ato contínuo, um dos soldados pegou o sujeito pelo queixo, ergueu e soltou. Eu nem quis mais ver o resto da cena.

No outro dia, como não tinha mais dinheiro para ir ao centro, resolvi ir a uma festa (mal) organizada em Cajazeiras, bairro onde moro. Foi aí que a coisa desandou para o meu lado, e me fez ter certeza de que, durante esse estado de sítio vigente por uma semana na cidade, eu só tenho duas alternativas: ou ir para um lugar bem longe e só voltar quando o parnavueiro acabar, ou ficar trancado em casa assistindo a filmes sem me atrever a colocar o nariz para fora da janela (que é o que eu estou fazendo neste ano). Primeiro, um grupo de homens queria me dar porrada por achar que eu estava dando em cima da namorada de um deles (e eu não estava). Depois, os policiais estavam espancando as pessoas por nada. Bastava que um meganha não fosse com a cara de uma pessoa para desferir uma cacetada ou um tabefe contra ela. Por fim, veio a desgraceira: após ter dançado e pulado demais, parei num lugar mais afastado para sentar e descansar um pouco. Cerca de cinco minutos depois, fui atingido à traição na altura do rim esquerdo por um forte chute desferido por um drogado. Ao tentar fugir dos covardes (ele estava acompanhado por outro sujeito, também drogado), caí e torci o meu pé esquerdo. Passei cerca de duas semanas com o pé enfaixado.

Isso aconteceu no dia 24 de fevereiro de 1998, e neste dia eu jurei para mim mesmo que jamais colocaria o meu pé em um festejo carnavalesco. Até assistia às transmissões pela televisão, mas, neste ano, resolvi que nem isso eu vou fazer. Pouco me interessará as performances das estrelas da axé music; nem me preocuparei com a macaquice que Durval Lélis inventará para atrair a atenção dos foliões e os olhares da mídia, pois eu aproveitarei o meu tempo com coisas bem mais interessantes.

Ficarei em casa, assistindo a filmes, e cagarei para o que estiver acontecendo no centro da cidade. Só nos últimos dois dias, eu já assisti a cinco.